A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

De leve

(Mafabami)

Minha cabeça está leve.
Não quero nada. Nem um chá. Obrigada. Nada desejo. Nem morrer.
Pois tem gente que às vezes quer morrer, você sabe.
E, você sabe, quando morremos, deixamos a individualidade e retornamos ao Todo.
Talvez esse Todo seja Deus, então, lhe digo, não tenho pressa de "ser Deus".
Estou leve, deixe-me ficar comigo. Apenas é o que lhe peço, amigo(a).
Nem para o deserto desejo ir. Para lá só vão os valentes.
Para o deserto, já bati pé que eu iria, mas acho que era só charme, daquela vez.
Minha cabeça está leve, veja só: nem tudo é tão ruim assim.

Mamãe foi morar na capital. Mamãe está de apartamento novo. Estante nova e novos livros. Anda lendo. Só o que me incomoda é que ela não se interessa em aprender a usar o computador. Minha mãe faz amizade fácil com as pessoas, e conforme disse-me ontem, enquanto escovava a dentadura (arcada superior, achei-a diferente sem dentadura, há anos eu não a via sem) "entrei para um grupo tão legal, a gente visita as pessoas idosas, confecciona peças para bebês carentes, faz passeios...".

Ah! Atualmente minha mãe corta os cabelos em outro salão e vai sozinha ao Mercado Municipal, comprar tainha. Meu Deus, será que quando eu passar dos 80, que nem ela, conseguirei ir sozinha ao mercado, comprar peixes?

Mamãe está mais feliz do que é, acredite. E eu talvez seja mais leve do que estou!

Filhota é uma mulher linda, mas será sempre minha criança, claro, pois quem é que se livra de mãe? Com a idade dela (21 aninhos), eu não sabia usar um computador e muito menos dirigir um automóvel numa cidade de médio porte, como aquela onde ela mora. Com a idade dela eu não sabia assar uma anchova, fazer um bolo, um feijão, uma sobremesa e - nem pensar! - eu saberia suturar a mão de um senhor de 60 anos, como estagiária num pronto-socorro de hospital. Com a idade dela eu já era a mesma de hoje. De notória preguiça e leveza. À época, já dizia que gostaria de estar sempre tecendo considerações acerca do nada. Pura falta de juízo, pois ignorava que o nada existisse.

Filhota estuda muito, isto me aborrece. Me dá dó. Mas se não estudar, como poderá ganhar a vida? Está tudo tão difícil hoje. Mas filhota ainda arruma tempo pra namorar. Porque, convenhamos: namorar, ficar, ir a festas, é preciso. É como navegar.

E eu tô leve. Minha cabeça está leve. Levemente triste.

Não, obrigada amigo(a), não quero nada. Nem que você me telefone! Agradeço. Na sinceridade. Eu só quero mesmo é ter o direito de ficar quieta. Não vou abrir meu "autiluqui". Então você está dispensado(a) de enviar-me mensagens.

Até meu marido está chateado comigo, pois não quero ver tevê com ele na cama. Na cama só quero dormir. Não pra sempre, claro! Que a vida não se livra da gente assim. (A vida se livra da gente é quando ela bem entende que deve fazê-lo.)

Sim, sei que há casos de pessoas que se desesperam e cometem suicídio, libertam-se da vida. Mas sou a pessoa mais preguiçosa que mamãe já teve (e foi ela mesma quem falou). Minha preguiça é tamanha, que gosto de acordar cedinho pra ter mais tempo de fazer nada. Uma pessoa assim, como eu, raramente desfaz-se de algo que não esteja indo bem. Mesmo que seja a vida.

Deixe-me amigo(a), por favor. Deixe-me. O máximo que lhe peço é ter o mínimo direito de estar triste. Estou apenas leve. Levemente triste. Pega leve!

Outro dia, liguei para uma amiga muito amada (já passou dos oitenta também, que nem mamãe), ela falou-me só de coisas boas quando lhe perguntei se estava bem. Disse-me ainda, em tom muito leve, "Fátima, eu só preciso de paz". Depois convidou-me a ir vê-la.

Estou leve, levemente triste. A tristeza leve é uma coisa assim meio aborrecida, porque quando se trata de uma tristeza pesadona os amigos ajudam a carregar.

Amigos, desculpem-me, não estou com vontade de conversar com vocês. Ah! E deixem para me visitar em outra ocasião. Se de fato me querem bem.

Tenho a impressão de que o sinônimo mais adequado para a palavra REALIDADE é: LEVEMENTE TRISTE.

(Laguna - Santa Catarina, setembro de 2006)
  • Publicado em: 20/09/2006
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente