A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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CUIMBA ERA O MáXIMO!

(Mafabami)

"Macunaíma pigarreava atirando gusparadas no rio...........sem saber o que cantava assim: Panapaná pá-panapaná. Panapaná pa-panapanema: Papa de papo na popa, .........."

Cuimba e Macunaíma nasceram no início do século passado.

"Pipiriripipi, pó pororó, tititi ti, tatatá" era assim que Cuimba verbalizava inesperadamente certas idéias. Ambos careciam da mesma falta de "civilização própria" e "consciência tradicional" segundo Mário de Andrade, justificando o caráter do seu "herói sem nenhum caráter". Já o Cuimba eu conceituaria como o anti-herói. Te-lo conhecido e amado me fez olhar os homens de forma enternecida. Meu pai era filho e sobrinho de professor e músicos, suas irmãs eram professoras, seus irmãos militares. Cuimba era só um anarquista individualista. Neste mundão um garanhão crioulo disperso, no aberto do tempo. Na juventude manifestou (contra um certo caudilho da pequena Imaruí) alguma paixão combativa e insurreta (talvez ao estilo Bakunin). Na maturidade, baseou seu modus vivendi no pacifismo do Novo Testamento (talvez mais para Tolstoi). Não conhecia nenhum dos dois russos, nem a palavra socialismo. Comunismo ele não pronunciava, e comunista ele substítuia por "vermelho".

Quando eu nasci, no dia em que minha mãe expulsou-me do seu útero macio e quentinho, deve ter sido uma grande alegria pro Cuimba. Ele era veterano na sua paternidade mas os dois irmãos que me antecederam eram meninos. Nosso primeiro olho no olho, por certo foi uma emoção diferente para ele. Coube a mim o privilégio de ser contemplada, recém nascida como a sua primeira guriazinha. Depois nasceram mais duas meninas.

Outro dia, eu tentava descrever ao meu afilhado, um sobrinho adolescente, o jeito que o seu avô me dava "beijo de escorregão", denominação encontrada pelo próprio Cuimba.

Cuimba lambuzava a boca com saliva, iniciava pela minha testa, passando pela maçã do rosto, ia até o queixo e subia pela outra face. Fechava-se um círculo em molhado beijo. Eu achava o máximo. Não entendi quando Marc negou-me a permissão para demonstrar-lhe tão original beijação.

Meu pai era uma figura ímpar. Aos domingos, após a missa, visitava o Asilo Santa Isabel, o hospital e a cadeia. Na práxis do seu, inconsciente e individualista anarquismo (preconizando a liberdade e a soberania absolutas do indivíduo), papai combatia qualquer restrição à autonomia individual. Sentia grande compaixão pelas pessoas presas ou circunstancialmente impedidas de ir e vir. Em dezembro ele saía pelo bairro Portinho a rezar os terços de Natal. Seus amigos, nunca eram pessoas influentes. Certa vez, através de um parente, meu pai tentou arranjar um emprego para um amigo mais pobre do que ele. Não foi atendido. Talvez porque, após descrever as dificuldades pelas quais passava o seu candidato, ao invés do nome, citou seu apelido. O amigo do meu pai, que precisava do emprego, atendia por "Baguncinha"!

A cena que de fato melhor traduziu Cuimba, aconteceu naquela noite de trovoada. Isso ele respeitava. Espreitava o mau tempo com jeito de cusco assustado. Minha mãe, professora juntamente com outras, retornava da capital, Florianópolis. Fôra tentar remoção para uma escola mais próxima de casa. Despencava até pedaço de céu velho do jeito que chovia. Relâmpagos terríveis que ele temia demais. Com seu melhor terno, de linho cor de manteiga, recém chegado da lavanderia, o sapato mais novo, guarda-chuva em punho. Corpo bem desenhado, sempre bem barbeado, com toda pose o bonitão. Bem no prumo lá foi o Cuimba pra rodoviária esperar minha mãe. De sapato brilhoso ele não abria mão. Na pressa, até pano de prato desavisado ia bem.

Desnecessário mencionar que a mãe ficou uma fera ao vê-lo encharcar a roupa da missa. Concluo que só o prazer da elegância, só a vaidade de exibir-se para um ônibus cheio de professoras, o tenha encorajado a enfrentar aquele temporal. Minha mãe, quando irritada comigo, dizia -"és o teu pai escarrada!" De acordo com a minha lógica, o prazer é uma arma contra o medo. Papai deve ter pensado "raio não cai em alguém de gravata e terno de linho bem passado". Talvez por pensar tão românticamente, numa sociedade tão excludente, ele estivesse sempre de bolsos vazios. Gercino, onde mora atualmente, usa apenas uma túnica, tipo quando ele era pequeno. Enquanto os meninos não aprendiam a avisar de suas necessidades fisiológicas, minha avó os vestia apenas com uma camisa. Ela tinha uma dúzia de filhos, uma renque para comandar, alimentar, banhar e vestir.

- "Saiam já de cima das camas! Vão já brincar lá na chácara! Gercino defendia-se: "meucuimba! meucuimba! O molequinho falava imba para limpo tentando explicar as boas condições de higiene em que se encontrava o seu traseiro. Os irmãos mais velhos o apelidaram de Cuimba.

Papai, que era o tal Gercino, deixou-nos de herança uns rosários em pedaços, que ele gastou de tanto rezar. Tá bom demais Cuimba! Voce era o máximo.

  • Publicado em: 15/07/2003
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