"Macunaíma pigarreava atirando gusparadas no rio...........sem
saber o que cantava assim: Panapaná pá-panapaná. Panapaná
pa-panapanema: Papa de papo na popa, .........."
Cuimba e Macunaíma nasceram no início do século passado.
"Pipiriripipi, pó pororó, tititi ti, tatatá"
era assim que Cuimba verbalizava inesperadamente certas idéias. Ambos
careciam da mesma falta de "civilização própria"
e "consciência tradicional" segundo Mário de Andrade,
justificando o caráter do seu "herói sem nenhum caráter".
Já o Cuimba eu conceituaria como o anti-herói. Te-lo conhecido
e amado me fez olhar os homens de forma enternecida. Meu pai era filho e sobrinho
de professor e músicos, suas irmãs eram professoras, seus irmãos
militares. Cuimba era só um anarquista individualista. Neste mundão
um garanhão crioulo disperso, no aberto do tempo. Na juventude manifestou
(contra um certo caudilho da pequena Imaruí) alguma paixão combativa
e insurreta (talvez ao estilo Bakunin). Na maturidade, baseou seu modus vivendi
no pacifismo do Novo Testamento (talvez mais para Tolstoi). Não conhecia
nenhum dos dois russos, nem a palavra socialismo. Comunismo ele não pronunciava,
e comunista ele substítuia por "vermelho".
Quando eu nasci, no dia em que minha mãe expulsou-me do seu útero
macio e quentinho, deve ter sido uma grande alegria pro Cuimba. Ele era veterano
na sua paternidade mas os dois irmãos que me antecederam eram meninos.
Nosso primeiro olho no olho, por certo foi uma emoção diferente
para ele. Coube a mim o privilégio de ser contemplada, recém nascida
como a sua primeira guriazinha. Depois nasceram mais duas meninas.
Outro dia, eu tentava descrever ao meu afilhado, um sobrinho adolescente, o
jeito que o seu avô me dava "beijo de escorregão", denominação
encontrada pelo próprio Cuimba.
Cuimba lambuzava a boca com saliva, iniciava pela minha testa, passando pela
maçã do rosto, ia até o queixo e subia pela outra face.
Fechava-se um círculo em molhado beijo. Eu achava o máximo. Não
entendi quando Marc negou-me a permissão para demonstrar-lhe tão
original beijação.
Meu pai era uma figura ímpar. Aos domingos, após a missa, visitava
o Asilo Santa Isabel, o hospital e a cadeia. Na práxis do seu, inconsciente
e individualista anarquismo (preconizando a liberdade e a soberania absolutas
do indivíduo), papai combatia qualquer restrição à
autonomia individual. Sentia grande compaixão pelas pessoas presas ou
circunstancialmente impedidas de ir e vir. Em dezembro ele saía pelo
bairro Portinho a rezar os terços de Natal. Seus amigos, nunca eram pessoas
influentes. Certa vez, através de um parente, meu pai tentou arranjar
um emprego para um amigo mais pobre do que ele. Não foi atendido. Talvez
porque, após descrever as dificuldades pelas quais passava o seu candidato,
ao invés do nome, citou seu apelido. O amigo do meu pai, que precisava
do emprego, atendia por "Baguncinha"!
A cena que de fato melhor traduziu Cuimba, aconteceu naquela noite de trovoada.
Isso ele respeitava. Espreitava o mau tempo com jeito de cusco assustado. Minha
mãe, professora juntamente com outras, retornava da capital, Florianópolis.
Fôra tentar remoção para uma escola mais próxima
de casa. Despencava até pedaço de céu velho do jeito que
chovia. Relâmpagos terríveis que ele temia demais. Com seu melhor
terno, de linho cor de manteiga, recém chegado da lavanderia, o sapato
mais novo, guarda-chuva em punho. Corpo bem desenhado, sempre bem barbeado,
com toda pose o bonitão. Bem no prumo lá foi o Cuimba pra rodoviária
esperar minha mãe. De sapato brilhoso ele não abria mão.
Na pressa, até pano de prato desavisado ia bem.
Desnecessário mencionar que a mãe ficou uma fera ao vê-lo
encharcar a roupa da missa. Concluo que só o prazer da elegância,
só a vaidade de exibir-se para um ônibus cheio de professoras,
o tenha encorajado a enfrentar aquele temporal. Minha mãe, quando irritada
comigo, dizia -"és o teu pai escarrada!" De acordo com a minha
lógica, o prazer é uma arma contra o medo. Papai deve ter pensado
"raio não cai em alguém de gravata e terno de linho bem passado".
Talvez por pensar tão românticamente, numa sociedade tão
excludente, ele estivesse sempre de bolsos vazios. Gercino, onde mora atualmente,
usa apenas uma túnica, tipo quando ele era pequeno. Enquanto os meninos
não aprendiam a avisar de suas necessidades fisiológicas, minha
avó os vestia apenas com uma camisa. Ela tinha uma dúzia de filhos,
uma renque para comandar, alimentar, banhar e vestir.
- "Saiam já de cima das camas! Vão já brincar lá
na chácara! Gercino defendia-se: "meucuimba! meucuimba! O molequinho
falava imba para limpo tentando explicar as boas condições de
higiene em que se encontrava o seu traseiro. Os irmãos mais velhos o
apelidaram de Cuimba.
Papai, que era o tal Gercino, deixou-nos de herança uns rosários
em pedaços, que ele gastou de tanto rezar. Tá bom demais Cuimba!
Voce era o máximo.