A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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A PROVA DE FOGO DE ANITA

(Mafabami)

Alguns dias após o nascimento de minha filha, uma outra professora teve também seu bebê. A lactação daquela mãe atrasou e sua prima, veio algumas vezes até minha casa, buscar um pouco de leite para o menino. Já no segundo ou terceiro dia Tânia passou a amamentar seu filho normalmente. Tanto eu quanto ela, primíparas, sem prévio acordo, criamos um elo de colaboração e afeto. Sempre que nos vemos penso na oportunidade que ela e seu filho me ofereceram para viver o inesquecível papel de ama-de-leite. Coisa assim tem mais chance de acontecer nas pequenas cidades como Laguna onde as pessoas tem oportunidades para se conhecerem melhor.

Ambas tivemos a alegria de envolver nossos bebês com as roupinhas mais lindas e cheirosas assim como fizeram conosco nossas mães. Assim como fariam todas as mães do mundo se pudessem. Feliz de quem recebeu cuidados na sua infância e pode oferecê-los as suas crianças. O bom da vida é envolver-se a tecê-la com zelo. Esmeradamente, respeitosamente.

Depois que nossos filhos crescem passamos a vê-los nas outras crianças. Esse exercício de resgate dos nossos pequenos (hoje moças e moços), levou-me a fazer algumas amizades - mirins. Tenho, por exemplo, a alegria de poder abraçar Maria Odécia quando nos vemos por aí, conversar com Aline ou Léo no meu prédio. Estejam eles com o humor que estiverem, sempre os considero dádiva de Deus. Às vezes fico observando a "turminha da Júlia" jogando taco ou vôlei na esquina. Ali se delineiam lideranças, se esclarecem situações de conflito, se disputam bolas divididas, se ensaiam relacionamentos para a vida, enfim, se aprendem as regras do jogo. Vejo-as brincar e não tenho dúvida que fazem o que há de mais saudável para si. Tem também dois gurizinhos, Luiz Henrique e Pedro ambos com um ano e pouco que saem em disparada fugindo de suas avós, são pirralhos fascinados com a própria locomoção recém aprendida. Só depois que crescem nossos pequenos é que temos tempo para observar da leveza, doçura, transparência, poesia, graça e energia que as crianças colocam em nossas vidas.

Outro dia, no norte do Estado, resolvemos passar de surpresa na casa de uma amiga para visitá-la. Lá encontramos sua sobrinha neta de três anos e pouco. A espontaneidade, o sorriso e a comunicação da espoletinha garantiram o clima de descontração, gratuidade e fantasia que as crianças geram. Já em Laguna, entre mini-telas de artistas da terra e graciosos artesanatos, numa casa ali da praça, encontrei a soldado Anita Garibaldi. Uma boneca de pano com uma espingardinha de madeira e lenço vermelho ao peito me fez lembrar Alice, a menina que eu conhecera no passeio. Tratei de redigir o "MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA DO SOLDADO ANITA" para enviá-lo junto com a boneca ao norte do Estado. Expliquei, no manual, que a única restrição para Anita, seria a piscina. Garupa de bicicletinha, parquinho, grama, mochila e até desacertos entre amigas (na presença de Anita) eram circunstâncias as quais a boneca sobreviveria. A prova de fogo de Anita ou outra boneca de pano, na verdade, é a saúde dessas encantadoras guriazinhas como Alice que inventam seu país de maravilhas a cada novo dia.

A criança bem cuidada nos dá o retorno de aprendermos com ela, é sempre um lembrete para não desistirmos da ternura. Uma sociedade atesta a sua competência também pelos projetos que dão prioridade aos pequenos.

Crianças desassistidas tornar-se-ão adultos que custarão para todos nós, um preço além das nossas posses.

  • Publicado em: 10/10/2003
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