- "Nossa estadia corpórea é circunstancial!"
Sentenciou alguém do grupo, redescobrindo a pólvora dentro daquele
ônibus. Não sei porque passamos do tema inicial (daquela conversa,
naquela viagem), que era sobre expressão corporal, para o mundo espiritual.
Dentre o que dissemos e o que ouvimos, guardei: nascimentos e mortes são
manifestações intermitentes do Verbo que se faz carne. O que chamamos
de vida é o equilíbrio resultante do anseio de reintegração
a um Todo contraposto ao apelo imanente da partícula (nós) em
manter-se. O que chamamos de anjos, são segmentos de luz que refletem
aquele Todo. Ao adentrar a dimensão material estamos anjos em forma de
gente, ao morrermos somos anjos de luz.
Seguíamos em direção ao norte do estado para ver o Festival
de Dança e curiosamente falávamos de coisas invisíveis,
extra sensoriais, etc.
Defendeu-se a idéia de que mais cedo ou mais tarde, controlaríamos
através de auto-monitoria nossas idas e vindas, nossa circulação
daqui para o além e vice-versa.
Enquanto esse tempo evoluído não chegava, cada um de nós
apresentou os planos a serem praticados na sonhada era do auto-contrôle.
Seguiram-se ricas descrições contemplando de benesses todos os
aspectos da vida física. Houve quem analisasse o rumo da conversa como
uma saudade que nós, anjos de carne, sentíamos do nirvana só
permitido aos anjos de luz. Outra pessoa defendeu que o tédio e o sofrimento
da vida levavam muita gente a desejar "ficar encantado" através
da morte. Leitura que também fizemos, foi a de que todos almejávamos
uma ponte entre o SER (Todo) e o SENTIR (partícula).
Na manhã seguinte, na copa do hotel, em Joinville, encontramos sobre
as mesas um texto sem autoria, apenas lia-se ao pé da página:
Leve como recordação da nossa viagem.
Entreolhamo-nos, e cada um suspeitou dos outros onze que, somados a si, completavam
o grupo de doze que compúnhamos.
Naquele café da manhã sob o título: SONHOS DE UM ANJO DE
LUZ ENQUANTO GENTE, lemos o que transcrevo abaixo:
- "Se eu pudesse, por algumas horas, queria ser um anjo da guarda!
Sendo um anjo imortal de Lá guardaria a carne viva de um anjo daqui.
Zelaria pelas buscas, agonias e êxodos dos seus encontros com Eros.
Eu teria pés, mãos, rosto, poder... e asas! Menos sexo. Seria
um anjo de luz responsável pela felicidade de um anjo de carne. Traria
às suas ordens, qualquer amor que escolhesse. Alguém com quem
desejasse estar. Alguém que lhe ofertasse mimos de pele, de cartilagem
e mucosas, de umidades movediças.
Alguém que o pusesse à deriva, na volúpia. Que lhe percorresse
em carícias, todas as vias e as sacras estações, que o
cumulasse de doçuras tépidas...
De sobre as nuvens, por remotos sinais, eu o faria flutuar até o céu
nos braços por si almejados. Enquanto isso, ficaria imaginando seu rosto
se iluminar, conforme as gargalhadas do seu sexo ao lançar labaredas
de cristais.
Ficaria feliz imaginando seu monólogo rouco, de repetidos monossílabos.
Seu resfolegar de bicho acuado à merce da paixão. Se eu tivesse
os poderes da luz angelical, dar-lhe-ia de presente alguém que fizesse
verter seu sucos e odores, armadilhas a que só os anjos de Lá
não sucumbem.
Sob minha guarda e orientação ele ouviría abafadas confissões
no travesseiro invadido. Ficaría de mãos dadas com os dedos do
seu partner bem ajustados entre os seus durante os apelos cochichados, atropelados
na urgência dos sentidos. Depois de assaltada e saqueada pelo prazer,
quando sua carne suplicasse descanso, eu expulsaria seu bem.
Envolveria seu corpo desamparado, pagão, com frescas cobertas de linho.
Sem profanar seu repouso, ficaria ali... ouvindo sua respiração.
De joelhos, agradecendo a Deus pela oportunidade, beijando seus pés,
beijando o ar!
Movendo lentamente minha alada estrutura para refrescar seu quarto, seu sono,
sua epiderme...
Antes do sol aparecer, dissiparía as marcas delatoras do anjo falsificado
que fui, enxugando de seus pés vestígios das minhas lágrimas,
preço da minha renúncia.
E... bateria asas de vez!"
À noite, no palco do Centreventos Cau Hansen, enquanto Ana Botafogo e
Marcelo Misailidis dançavam "Gisele", lembrei dos "Sonhos
de um anjo...".
O pas-de-deux dos bailarinos famosos que me faziam chorar continham o lirismo
e a plenitude da dança desejada pelo anjo da guarda.
A coda, o arremate final no balé angelical, fora feito pelo anjo de carne
e seu mentor quando expulsou o cavalo nagô.
No grand pas-de-deux, realizáva-se, naquele texto, a utopia humana da
fusão entre a matéria e o que a concebe. Até hoje ninguém
esqueceu os delírios daquele anjo anônimo que esta em cada um de
nós.