A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Excluída da manchete

(Mafabami)

Dona Marina aproximou-se da porta que dava acesso à rua, para iniciar seu dia de trabalho no Restaurante Nice em Laguna, quando viu colado um bilhete no qual leu: "Mãe viajei. Caiu um avião em Florianópolis e meu cunhado estava dentro". Aquele domingo de abril em 1980, na capital de Santa Catarina, amanhecera pleno de dor, comoção e desespero . Um Boeing 727 da Transbrasil, que ia de Fortaleza a Porto Alegre, com escala em algumas capitais, batera e explodira por volta de 20:37 horas do sábado, 12 de abril, contra o morro da Virgínia na localidade de Ratones, Ilha de Santa Catarina. Dentro do avião havia 58 pessoas.

O vôo trazia alguns passageiros gaúchos mas em sua maioria eram ilhéus, empresários, professores universitários, médicos e jovens que voltavam de cursos, negócios, compras, geralmente grupos de pessoas da mesma família e ou equipe de trabalho.

Estávamos vendo "Airton e Lolita" programa de sábado pela TV quando o jornalista Roberto Alves entrou ao vivo, noticiando a queda do avião em Florianópolis.

Dali em diante, sucederam-se boletins a cada instante. Sabíamos que meu irmão freqüentemente retornava de São Paulo nos finais de semana mas felizmente, naquela hora, meus pais já dormiam no segundo andar, e não ouviram as chamadas de Roberto Alves pela TV.

No momento em que o jornalista prometeu divulgar "dentro de instantes" a lista dos passageiros, eu desliguei o aparelho e sugeri que meu noivo fosse pra casa. Deveríamos descansar um pouco para o caso necessário fosse, viajarmos pela madrugada. Era quase meia noite quando deitei e cheguei mesmo a dormir por umas duas horas. Vozes vindas da sala me davam conta que seu Waldir, sogro de meu irmão, à porta de casa, convidava minha mãe pra ir ver o filho dela que sobrevivera à queda do Boeing. Minha mãe estava muito pálida e calada quando ouviu de mim: "Mãe, to sabendo..." Agora sim ela mostrava-se incrédula e antes que seu - O quêêêê? (a julgar pela gravidade do olhar que me lançou, se transformasse em algo muito prático), fui completando: _ ...é mãe eu sabia que o avião havia caído mas achei que deveríamos dormir um pouco mais, pra enfrentar melhor isso tudo...

A mãe viajou de imediato, meu pai saiu comigo, rezando baixinho pelas ruas muito quietas da velha Laguna, paramos no Café Tupi pra olhar a TV que dava novas informações. Acordamos meu noivo e seguimos no carro dele, indo tomar um cafezinho alem de Garopaba.

No boteco meia dúzia de bebuns conversavam quando um falou: " Ãn- rã...explodiu é? eles tem mais é que morrêêê! essa turma só qué andá de avião né?" Saí dali compreendendo que os excluídos querem mais é ver o mundo explodir. Tive pena daqueles homens tão desmotivados que enchiam a cara em madrugada de domingo num bar de beira de estrada.

Naquela manhã só minha mãe e a mulher de meu irmão tiveram acesso ao quarto, aonde confuso, ele disse que o caminhão que dirigia, batera na localidade de Siqueiro.

Meu irmão perdia dois amigos, colegas de empresa. Cidades catarinenses e de outros estados perderam preciosas vidas. Naquele dia, apenas três pessoas saíram com vida de Ratones. Dias depois, estávamos todos conversando com o mano que teve apenas os dois tornozelos engessados, quando a equipe da extinta revista Manchete, entrou para uma reportagem. Ao puxar a cortina num gesto brusco, a fim de jogar melhor luz para fotografia, o jornalista provocou um inesperado e desagradável ruído metálico.

Sem cerimônia, e com uma raiva que nem eu saberia hoje explicar, falei curta e grossa : - O senhor por acaso, perguntou ao Flávio, se poderia abrir a cortina do quarto dele? Silêncio e um certo constrangimento no ar. Flávio riu e o repórter fez as fotos. Meu pai ficou bem na foto, meu mano idem, todos enfim. Só eu fui excluída da Manchete. Pudera! dei uma bronca naquele jornalista! Mas...se fosse hoje, DARIA OUTRA VEZ!

  • Publicado em: 14/04/2005
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