A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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O barquinho de Iemanjá

(Mafabami)

Quando é Ano-Novo na minha cidade, corre todo mundo pra beira da praia. Vai o “casal bem casado”, levando o seu champanhe, mais o trocado para os crepes das crianças. Vai todo “galinho” emproado com sua menina, todo gatinho com sua gatinha... E todos, quase todos, agarradinhos, darão pulinhos, na terra ou na preamar, fazendo as juras, as promessas.

Serão tantos, tantos beijos. Na avenida lá da praia, passa o ricão na sua caminhonete brilhosa, com volante de espuma injetada, com esposa linda, de beiço saliente de sorriso-botox-injetado... também, passa o pobre-diabo, também passa o pobre-de-Cristo e até o pobre de espírito.

Todos querem ver o céu desabando no pirotécnico colorido artificial. Todos querem ouvir o estouro da foguetada. Vão pra lá pra beira do mar as mulheres de turbantes e saias brancas e os homens que com elas rezam e homenageiam Iemanjá.

Vai o moço agradecer porque saiu do armário... Vai também a moça agradecer porque saiu do fundo do poço e agora ficou moço... Vão os que gostam de orar, outros vão só pra roubar. Tem gente que vai só pra olhar... Vai gente até sem querer e tem gente...imagina... vai lá pra morrer! Tudo isso é pelo Ano... que vem!

Pois de uns anos pra cá, gosto mesmo é de ficar espreitando o novo tempo que ainda não se gastou. Espio aqui da varanda, de longe, a foguetada. Tenho medo de ir ver de perto essa ligeireza com que o Ano Novo chega e já sai em disparada pro futuro. Olhando assim disfarçadamente pro tempo parece que ele se demora mais.

Há um momento em que raleiam os clarões, os estouros, e começam a passar de volta os que não tem carro, nem dinheiro pro ônibus... Se chove, as mulheres e homens trazem os filhos pequenos ao colo e os calçados nas mãos. Os bebuns solitários vem discursando ou resmungando, os acompanhados vem aos safanões oriundos de algum ciúme do ano passado, indagorinha.

Vai, nessa hora, me dando um sono, misturado com nostalgia. A casa fica silenciosa as visitas se despedem. A louça usada na refeição, em geral ainda incomoda pela copa e o prazo de validade do meu banho, com tantas emoções, venceu!

Já começo a pensar no primeiro dia do ano que inicia. Amanhã, será feriado, e o interfone provavelmente vai tocar pois a vida, como o tempo, só se renova quando se realimenta...

O mal-estar de um estômago vazio, requer um pouco de leite, um pão... No Natal já foi assim, lá na porta, no térreo uma voz de mulher “não tenho nada em casa” e eu... tontinha, tontinha de sono, mas desci... era Natal.

Tenho medo do tempo, ele é tão célere, tenho preocupação com o estômago daquelas pessoas, quando se apagam todas aquelas luzes, quando se esvai todo o brilho do céu do reveillon... Tenho tanto medo quando o barquinho de Iemanjá se vai e todos aqueles estômagos ficam desprotegidos...quando aquelas pessoas ficam com medo e com fome.

Eu só queria era PAZ mas a paz, é mesmo conforme disse certa vez a cantora Mercedes Sosa, “A paz é comermos todos juntos”!

  • Publicado em: 01/01/2005
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