A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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ODORES... SABORES... AMÔRES

(Mafabami)

Primeiro foi ela.

Eu notava perfeitamente que quando me olhava com mais demora, ela disfarçava um certo sorriso de felicidade. Dava para perceber que gostava de me ver crescendo, sentia que seu olhar era amoroso.Era confortável sentir sua proteção já que ela permanecia o tempo todo dentro de casa, costurando de manhã ã noite, enquanto minha mãe lecionava.

. Das lembranças mais remotas que tenho de minha avó, salientam-se as do olfato. Gostava muito do cheirinho de pão que permanecia na bolsa que ela fizera, de retalhos de tecido, para ir à padaria.Minha experiência, com partidas definitivas mais sentidas, começou com ela que, sem dúvida, é minha mais forte referência.

Depois, foi ele.

Seu defeito era dizer coisas inoportunas como, por exemplo, quando estávamos fantasiados para os bailes de carnaval, o pai chegava na sala e sugeria "-Por que vocês não vão rezar?"

As lembranças mais marcantes eram de sua força muscular, seu suor de trabalhador quando mais novo ou mais tarde, plantando no pomar de casa, onde nas noites de verão andava com uma lanterna descobrindo procissão de formigas, tentando eliminá-las com uma mangueira d'água. Muito comum era ouvi-lo cantarolando..."Senhor meu Deus, quando eu maravilhado, fico a pensar nas obras de tuas mãos..." seu hino predileto. Um sabonete bem cheiroso, um café com bolo e uma missa eram suas escolhas preferidas.Sapato novo já vinha da loja no pé, conforme ele justificava era pra "tirar a bobagem", o usado já ficava no pé do primeiro pedinte que ele encontrasse...

Um dia o pai também partiu para sempre. Dele ficou-me a impressão de um sujeito que veio a Terra definitivamente... a passeio!

Nesse meio íamos crescendo, um dia eu e o mano, já moços, fomos de manhãzinha lá na praia do Iró pegar siri.Pescamos uma boa quantia, há trinta e poucos anos sobrava muito siri na hora que a onda escoava. Corríamos de coca nas mãos dando gargalhadas por não dar conta de tantos que fugiam ligeiros de volta pro mar. Ele também gostava muito de siri. Dos rapazes era o mais calado, mas havia uma ternura no seu jeito durão.Quando travamos aquela guerra de travesseiros de macela onde deixou-me tonta mostrou-se bem preocupado....

Mais tarde já na Base Aérea de Canoas levou-me num feriado para conhecer o quartel.No setor de materiais bélicos, que comandava na época, ofereceu-me uma arma ensinando-me a atirar. A regalia deixou-o quites comigo, perdoei-o por aquela vez que ele contou pra mãe que eu estava na rua jogando bolinha de gude com os meninos. Mais recentemente, de férias em Laguna, ele estava de aniversário e fui levar-lhe um livro. Esticado de barriga pra cima sobre a cama aguardava o almoço, obriguei-o a dar risadas quando deitada sobre ele abracei-o e comecei a nos rolar de um lado para o outro. Meu cumprimento embora original foi abusado, porem, inesquecível para ambos!

Conforme eu dizia adoro siri ensopado com arroz e tive a oportunidade de dizer a minha amiga que ela fazia o melhor risoto do mundo. Foram tainhas, camarões, cozidos de carne, feijoadas e churrascos que fizemos juntas.

Nossa folia gastronômica durou vários anos. Há pouco mais de um mês, de mãos dadas dizíamos bobagens disfarçando ambas o nosso desapontamento pela realidade tão dura da sua doença. No hospital ela me dava aulas de Geopolítica e tinha a paciência de ouvir e a fineza de elogiar textos de uma autora totalmente desconhecida como eu. Poucos dias antes de sua partida encostei meu rosto no seu e ela chamou-me de irmã, fiquei orgulhosa. A professora Dulce Michels irmã do meu marido, era extremamente culta e humana.

Eram odores, eram dizeres, eram sabores.Foram abraços, foram partidas...Eles se foram...Foram meus amores!

  • Publicado em: 03/11/2003
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