A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

... gu... gu... Mimi... Dadá...

(Mafabami)

Assim que iniciam as emissões vocais, as crianças tendem a repetir as sílabas que conseguem articular. Essa parte do aprender vem se mantendo da mesma forma. Quando nos referimos a um bebezão costumamos imitá-lo pronunciando gu... gu... dá... dá... Já no caso do aprendizado da leitura e da escrita houvera muitas mudanças. Os jardins de infância, e a pré-escola cada vez mais aplicam técnicas inovadoras, juntam o lúdico ao pedagógico e buscam... resultados! Vivemos a era da produtividade, do lucro. Uma correria desabalada e desumana para ser bem sincera.

Produzir em série, monopolizar mercado, consumir, consumir, consumir....

Os imperadores querem massificar as populações, as sociedades. Pequenas tribos auto gestoras vão sendo arruinadas. O que existe de gente, de humano, de sensível em nós, vai dando lugar a racionalidades obtusas de aparelhos de estado.

Tens dinheiro? Então és uma pessoa de bem, és cumprimentado nas ruas. Serás julgado pela roupa e o carro que usas.

Ah! Mas eu falava de crianças... Sim, desde a primeira infância até a puberdade as crianças tornaram-se também objeto de cobiça, de troca e venda neste mundo de mercados. Há todo um comércio que viaja pela pornografia, pela pedofilia, pelo tráfico, pela prostituição. Práticas essas que originam outras atitudes monstruosas contra as crianças como viciá-las, violentá-las e assassiná-las. Senhor tende piedade de nós! Ontem mesmo uma menina de seus dezessete anos empurrando um carrinho com bebê dizia-se soropositiva e pedia leite em pó para o filho. Entre a compaixão e a revolta dei o dinheiro mas não tive coragem de olhar o bebê. Eu não quis ver a face do inferno de mundo em que vivemos.

Aproximam-se o dia das crianças e o dia dos professores. Felizmente temos muitos exemplos bons ainda para ter esperanças. Pelas escolas deste país ainda temos almas fantásticas, pessoas maravilhosas que sabem o valor do seu trabalho e do amor que dedicam as suas crianças. A criatura humana será sempre o conflito entre o bem e o mal. As crianças serão sempre, em nossas vidas de adultos, o chamamento, o convite, a reestruturação contínua do bem. Os professores, principalmente das classes iniciais, serão sempre os grandes articuladores do futuro. Em nossa tri-centenária Laguna já nas primeiras décadas do século passado a professora Mimi (Arminda Nascimento) aprendia com sua mãe as lidas de ensinar uma turminha de pré-escolares. Em uma sala da própria residência da família funcionou por muitos anos a conhecida Escolinha da Dona Mimi. Ali naquela sala, na subida ao lado da Fonte da Carioca, produziam-se em verdadeira oficina humana, fios importantes do tecido social, malha bem tramada, bem colorida, bem amorosa. Ali naquela escola artesanal estavam implícitas a ética, a moral, o respeito pelo outro, etc. Naquelas relações interpessoais iam se moldando as regras da boa convivência, se civilizando crianças, pois escola é prioridade para que se aprenda a ler o mundo que está por trás da palavra. A pensadora Rosiska Darcy de Oliveira que neste segundo semestre lançou a obra Reengenharia do Tempo diz: "Uma civilização obcecada pelo lucro e pelo consumo destrói sistematicamente as relações próximas entre as pessoas. O que é da ordem do afetivo, do imaterial amoroso, quase sempre anônimo, corre o risco de submergir em suas águas. A vontade de ampliar as oportunidades de interação afetiva, de concretizar projetos de formação, o apelo das alegrias, tudo converge para a necessidade de nadar contra a maré."

Recentemente tive a oportunidade de abraçar e beijar a professora Mimi nos seus oitenta e poucos anos de doçura, morenice e lucidez. Ah! Quanto precisaríamos de mais gente assim tão digna, tão respeitadora da alma infantil. Essa gente grande no melhor sentido da palavra. Além de Mimi tem também a mana Dadá, nosso cérebro da matemática desde o Ginásio Lagunense. Dadá, a professora Elza Nascimento, um talento para as ciências exatas, lecionava para o Curso Científico e o Técnico em Contabilidade.

Fazia tempo, professoras Mimi e Dadá queria dizer-lhes do bem que trouxeram para a sociedade lagunense. Sempre que as vejo, firmes longevas caminhando altaneiras na sua singeleza, pelas ruas da cidade, penso que a vida tem conserto. Penso que os balbucios infantis que começam com gu... gu... mi... mi... dá... dá, poderão transformar-se em cânticos, poemas, discursos e orações na boca de verdadeiros seres humanos. Muito obrigada Mimi. Muito obrigada Dadá.

Fraterno abraço da Fátima.

  • Publicado em: 30/09/2003
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente