A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Peculiar Paisagem Interior

(Tania Montandon)

Puxando a corda do alto, a bondade divina fecha, dá um nó em quaisquer satisfações, encobre seus tesouros com uma chuva de granizo, deixando almas frias e estragos a ponto de sequer poder voltar a crer numa tranquilidade de espírito ou que se possa rejuntar nossos cacos num ser inteiro ou mesmo descobrir nesses fragmentos a nitidez de uma verdade, pois nossa dor não merece mais que um vago olhar, com direito a somente uma breve trégua.

À noite, imergimos no próprio sono, até imaginamos encontrar alhures respostas para as dúvidas ou mesmo que houvesse alguém para compartilhar a solidão tão próximo fisicamente na cama contudo em outro mundo a ponto de afastar as cobertas e ir ver algum filme de ação na TV - não, nada de divina presteza viria nos socorrer ou ajudar a dar sentido à noite e ampliar o reflexo de nossa alma no mundo. Desvanece a possibilidade. Vive-se a inútil confusão de questionar: o quê? Pra quê? E por quê? E pra onde? Quando? Isso que arranca a pessoa do sono restaurador e a deixa na exaustiva e vã busca de resposta.

Quando algo incomum ocorre na vida, morte, doença, perda importante, mudanças, o mundo toma outra forma de ser sentido, visto, encarado. A imaginação ganha espaço. Uma vida que partiu, solitária como um lago distante, "vista" pela janela a correr pelo jardim. Num reino belo e tranquilo, mas que desaparece tão depressa que mal roubamos a esse lago sua solidão enquanto o devassamos com o olhar e fantasiamos beleza e tranquilidade dando as mãos no jardim.

No auge do autismo, nada mais perturbando a paz, no cume da indiferença, consciência em alfa com o aspecto de pura integridade, as perguntas existenciais afiadas que sempre se atrevem a nos picar nos momentos menos propícios simplesmente esvaecem e fica uma serene resposta confortadora de todas as horas: nós permaneceremos!

Como se não fosse possível quebrar esse estado, romper essa re-inocência, manchar o manto flutuante e leve de silêncio entremeado aos suaves cantos de pássaros ou distantes apitos de navios, um latido, um zunir do vento a balançar cortinas. Nessa paz psicologicamente treinada, a sombra tremula devagar e a luz mostra-se venerando sua própria imagem na parede.

O interromper essa aura por um terceiro desapercebidamente é um perigo! Energias condensadas podem desequilibrar o ambiente e estranhamente olhos brilham seja de desprezo, ódio ao mundo ou outras obscuridades até então adormecidas. Tristeza, sofrimento, cansaço tornam, então, o recanto pouco acolhedor e de inacessível comunicabilidade. Os seres ali se vêem sugados por uma forte fadiga. E o efeito de todo o processo reverte-se numa incorrigível ansiedade e desesperança sem consolação.

Estranhos devaneios apossam-se duma mente fragilizada. A carne fragmenta-se em átomos varridos pelo vento e espalhados pelo universo. Estrelas em fogo ardente lampejam no peito, ferindo e queimando ferozmente o coração: de rochedos, nuvem, céu, mar, galhos, assim ligados propositalmente ansiando a reunir numa forma exterior os fragmentos desorganizados no caos da visão interior da alma.

Impossível resistir ao ímpeto de vaguear de um lado para o outro à procura de si mesmo. Um impulso isolado, duradouro, brilhante e pungente, distante do cotidiano entre família, amigos, hábitos e gestos conhecidos. Um intermitente estímulo ao que extinguiria o paradoxo, o desespero, o medo, a carne em humana forma e conduziria à paz eterna, descanso do espírito exausto, à segurança absoluta do nirvana em tensão zero.

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