Puxando a corda do alto, a bondade divina fecha, dá um nó em
quaisquer satisfações, encobre seus tesouros com uma chuva de
granizo, deixando almas frias e estragos a ponto de sequer poder voltar a crer
numa tranquilidade de espírito ou que se possa rejuntar nossos cacos
num ser inteiro ou mesmo descobrir nesses fragmentos a nitidez de uma verdade,
pois nossa dor não merece mais que um vago olhar, com direito a somente
uma breve trégua.
À noite, imergimos no próprio sono, até imaginamos encontrar
alhures respostas para as dúvidas ou mesmo que houvesse alguém
para compartilhar a solidão tão próximo fisicamente na
cama contudo em outro mundo a ponto de afastar as cobertas e ir ver algum filme
de ação na TV - não, nada de divina presteza viria nos
socorrer ou ajudar a dar sentido à noite e ampliar o reflexo de nossa
alma no mundo. Desvanece a possibilidade. Vive-se a inútil confusão
de questionar: o quê? Pra quê? E por quê? E pra onde? Quando?
Isso que arranca a pessoa do sono restaurador e a deixa na exaustiva e vã
busca de resposta.
Quando algo incomum ocorre na vida, morte, doença, perda importante,
mudanças, o mundo toma outra forma de ser sentido, visto, encarado. A
imaginação ganha espaço. Uma vida que partiu, solitária
como um lago distante, "vista" pela janela a correr pelo jardim. Num
reino belo e tranquilo, mas que desaparece tão depressa que mal roubamos
a esse lago sua solidão enquanto o devassamos com o olhar e fantasiamos
beleza e tranquilidade dando as mãos no jardim.
No auge do autismo, nada mais perturbando a paz, no cume da indiferença,
consciência em alfa com o aspecto de pura integridade, as perguntas existenciais
afiadas que sempre se atrevem a nos picar nos momentos menos propícios
simplesmente esvaecem e fica uma serene resposta confortadora de todas as horas:
nós permaneceremos!
Como se não fosse possível quebrar esse estado, romper essa re-inocência,
manchar o manto flutuante e leve de silêncio entremeado aos suaves cantos
de pássaros ou distantes apitos de navios, um latido, um zunir do vento
a balançar cortinas. Nessa paz psicologicamente treinada, a sombra tremula
devagar e a luz mostra-se venerando sua própria imagem na parede.
O interromper essa aura por um terceiro desapercebidamente é um perigo!
Energias condensadas podem desequilibrar o ambiente e estranhamente olhos brilham
seja de desprezo, ódio ao mundo ou outras obscuridades até então
adormecidas. Tristeza, sofrimento, cansaço tornam, então, o recanto
pouco acolhedor e de inacessível comunicabilidade. Os seres ali se vêem
sugados por uma forte fadiga. E o efeito de todo o processo reverte-se numa
incorrigível ansiedade e desesperança sem consolação.
Estranhos devaneios apossam-se duma mente fragilizada. A carne fragmenta-se
em átomos varridos pelo vento e espalhados pelo universo. Estrelas em
fogo ardente lampejam no peito, ferindo e queimando ferozmente o coração:
de rochedos, nuvem, céu, mar, galhos, assim ligados propositalmente ansiando
a reunir numa forma exterior os fragmentos desorganizados no caos da visão
interior da alma.
Impossível resistir ao ímpeto de vaguear de um lado para o outro
à procura de si mesmo. Um impulso isolado, duradouro, brilhante e pungente,
distante do cotidiano entre família, amigos, hábitos e gestos
conhecidos. Um intermitente estímulo ao que extinguiria o paradoxo, o
desespero, o medo, a carne em humana forma e conduziria à paz eterna,
descanso do espírito exausto, à segurança absoluta do nirvana
em tensão zero.