A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

A noite de mil e uma horas

(Tania Montandon)

Os cientistas conseguiram. Mudaram o ritmo do tempo. Conseguiram quase pará-lo. Falta pouco. Portanto, em hospitais para nada servem os relógios. Ponteiros pra quê? Não importa quantos milhões de pensamentos passam pela cabeça ou as infinitas viagens imaginárias. O tempo simplesmente não passa. É para além do toque e do olhar.

Somente aqueles que conhecem a verdadeira dor podem ter o instrumento de percepção vital afiado. Podem ver, num universo de culturas, o valor somente presente nas obras construídas com raro tato. A carne arde, deforma, exala os gases da transformação em meio às chamas belas e fosforescentes da superação. Marcas infinitas sobre a pele enrugada. incansável e homérica luta de deuses e semi-deuses perante a fúria das emoções inomináveis jacentes no coração.

Falta. Nela perco-me ao desfiar minhas motivações emaranhadas às mais intensas emoções e , por incrível que pareça, chego com facilidade ao cerne próximo da velada causa que sustenta e alimenta meu ser perante outros seres da pretensa humanidade. Fina camada esta entre minha Verdade e a recalcada sociedade. Fina por demais, sensível até o literalmente 'não o poder mais'. limite perigoso, lúcido, escorregadio e repleto de armadilhas sensoriais, culturais, instintuais, onde não creio chegar-se por escolha.

Bolha de sabão, veja! Não toque! Sexualidade? O que é isso? Que relação possui com a psicose? Este corpo que tanto pesa-me a existência. Não o possuo, porém lhe devo cuidados, lavar, carregar, sentir este corpo desconhecido, despedaçado, pele, órgãos, quase uma essência externa à qual devo nomear aparência. E minha? Minha é essa aparência?

Sim, eu sei, não há respostas fáceis. De tudo fica sempre um mistério, talvez vital à minha não convalescença. O tempo que tanto me fugiu por milésimos de segundos resolve não mais me deixar em paz. Arrastam-se os segundos na minha tortura de os acompanhar. Estórias, devaneios, diálogos interiores, imagens mil entrelaçadas, nada, nada...

Nada consegue fazer o tempo passar. De repente a luz, o raio. os estridentes gritos surdos-mudos fazem-me arrepiar. Sim, é ele de novo: mais forte e poderoso que nunca. O medo em sua forma humana de pânico domina o frágil espírito a balbuciar... vovó,vovô. senhor da razão, por que não vos apiedais duma alma nascida e fundida na emoção, crua, nua. Fervente no chamar da redenção.

Viagem.do ente: doente, ente com dor? Qual nunca a teve? Pois se um ente nunca teve dor, por que usaria a palavra? Existe ente sem dor? Ou sou eu só, uma doente, que agradece a dor pra aproveitar sua ausência... ou existirão entes eternamente em dor? Quais?

Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente