A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

A névoa, a flor, o amor

(Cissa de Oliveira)

Como se tudo na vida fosse um filme desses de ação, o pianista parecia apressado, desdobrando-se ao piano. A iluminação era morna e você mostrava um sorriso mais do que morno. Muito embora esta seja uma fantasia, estávamos bem bonitinhos naquela mesa, indiferentes aos olhares das pessoas e à agitação iluminada da noite urbana. A sua camisa da cor de manteiga parecia tecida para o afago. Não ousei pensar na pele, ou, em verdade eu ousei sim, para logo em seguida desviar o pensamento e depois mais uma vez voltar a ele, torcendo para que você se mantivesse sempre na minha afetividade e isso, certamente, não dependeria só de mim. Do que falaríamos? De vinho eu sabia apenas que gostava, pouco se me interessava safra, marca, nada. Que agradasse ao paladar.

Quando eu percebi, as pontas dos meus dedos deslizavam, não sem cuidado, sobre as pétalas de um arranjo de flores. Eram rosas vermelhas, ainda me lembro como se acaso fosse possível esquecê-las.
- São fugazes as flores, especialmente quando... aguardei o término da frase mas por alguma coisa que eu não atinei de imediato, você se calou. Toda frase exige uma finalização, ambos sabíamos, e eu não quis perguntar, ao menos com palavras, sobre qual seria aquela. Creio que os meus olhos o fizeram e você disse:
- Especialmente quando afastadas da solidão que lhes é peculiar.

Enveredamos por outros assuntos mas a solidão peculiar às flores continuaram
bem aqui, martelando. - Talvez nesse lindo arranjo onde estão, elas sejam menos solitárias, eu disse no meio de outra frase qualquer, e você não tardou: - Tão menos solitárias quanto um louco rodeado de pessoas. O meu primeiro ímpeto foi de rir, o que não significa que eu tenha desdenhado a profundidade do assunto. Sem dúvida que as flores mais vivas são as mais solitárias, por imenso que seja o jardim, posto que fixas, e os loucos, bem, eles possuem uma realidade à parte.
Então foi a minha vez de não tardar. - Se ao menos as flores pudessem voar.... - Se as flores voassem... - e quem se calou fui eu. Se as flores voassem não seriam flores.

Foi aí que eu despertei do meu sonho acordada. E você não poderia descer de patamar na minha afetividade. Primeiro porque seria algo contraditório para com a sua pessoa, mas também porque você, você não estava lá, assim como o pianista se desdobrando, a noite urbana, o vinho e a mesa escolhida estrategicamente, nada.
Seríamos as próprias flores dessa história e somados à fugacidade das coisas belas, eis o que existiu, e aquela névoa a respeito do amor, no ar.

Mas disso não se falou.

(24.04.06)

Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente