A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Menino do pocotó

(Cissa de Oliveira)

O Sr. preocupado, em nada lembrava Mindinho, o Menino do Pocotó. É isso mesmo, ele era daquele tempo. Do tempo do cavalinho de pau. Da época em que lacraia, era apenas uma designação para centopéia. Naqueles idos, a bordo do seu alazão, tinha o Zorro como ídolo, e o mundo, para ele, era apenas uma gangorra.

Ali, ele era o aventureiro que atravessava rios, e da montanha mais alta, desvendava paisagens. Sempre o mocinho, ganhava batalhas, beijos, medalhas. Melhor do que isso, só as histórias da mãe. Histórias de tudo, até de assombração. Certa noite, ela disse que contaria a história no escuro. À determinada altura, ao vivo e a cores, apareceu um fantasma que tinha fogo na boca. Como era possível? Algazarra da criançada. Não imaginavam que era brincadeira da tia, aumentando as asas da imaginação da mãe. E além das histórias, havia as músicas. E nem eram de ninar. Na verdade eram para animar, sonhar. Ela dizia: - Agora, vou cantar a música para quando o Mindinho for grande! - Ah! E a minha? Os outros reclamavam.

Tempos depois - mais ou menos aos dez anos - as histórias foram diminuindo e o cavalinho, há muito, coisa do passado, vivia em alguma gaveta da memória do menino. Tão consistente quanto a névoa nas montanhas que ele passou a enxergar lá longe.

O Menino do Pocotó adolesceu. Cresceu. Ganhou pêlo, voz engrossada. E agora, adulto, tantas vezes, adormece pela metade. Pudera, é pouco chão pra tanto corredor, tanta sala, tanto labirinto, tanta guerra. Vai que amanhã ele acorda com alguma notícia bombástica do tipo: "Bush desconfia que estão sendo produzidas armas químicas na Amazônia..." Corre à janela e, além do cinza, só o vermelho. E não é daquele, da boca do fantasma das histórias da infância.

O que é bom, demora. E quando vem é com urgência. Acaba depressa. Então, vez em quando, há que se farejar. Correr atrás. Sair na frente. Vigiar. E se relaxar, deixar os sapatos a postos. Aparar as arestas. Redescobrir labirintos. Cheirar o queijo, a água, o ar, a faca, o diabo. Sabe como é, sempre se perguntar: se eu não tivesse medo, o que eu faria? O Sr. Preocupado já descobriu. Vai pra Europa. Vôo 747, acho. Influência do Zorro é que não foi. Premonição de música de mãe, foi isso. Aposto.

Ah! Dá licença: é duro "adultecer". Palavra esquisita? O Menino do Pocotó não acharia. Acabei de inventar. Tem cores de arco-íris. É um presente meu pra ele, só pra ele, ta?

Falando nele: - Mindinho, chama o alazão e chega pra lá. Deixa-me naquela montanha mais alta, que isso aqui está virando Bagdá, aquela, depois da guerra.

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