Homenagem a Cora Coralina (1889 - 1985).
Poeta natural de Goiás e reconhecidamente uma doceira de mão cheia.
Eu posso ouvir a batida dos talheres sobre o inox da pia. Alguém prepara
um doce. Para imaginar um tacho sobre um fogão à lenha, daqueles
à moda sertaneja eu não precisaria fechar os olhos mas fecho.
Outra casa, outra época, outra pia, sem inox. Todo o presente se esvai,
como se acompanhasse o eco que os talheres fazem.
O tempo se curva como uma flor no útero. Sou eu o bebê. Nascerei
numa casinha rodeada de natureza, e por algum desses desígnios conviverei
com a Aninha da Ponte da Lapa. É querer muito?
Pode ser que eu venha meio sinhá, escrava, ama de leite, dama da corte,
não sei, mas uma coisa é certa, antes disso eu serei miúda,
miudinha mesmo, sem a consciência exata de que mais tarde correríamos
pelo sertão, entre os leitos ora transbordantes, ora secos, dos rios.
Talvez a Aninha, vez por outra me confundisse com uma formiga - de incansável
na traquinagem, ou por gostar muito de doces, ou porque eu novamente nascesse
com os cabelos da cor do " ponto" dos caramelos. De miudinha seria
como uma marca entre os bordados que a luz do sol faz no chão quando
filtrado pelas árvores de copas altas, ou muito escassas, que isso depende
da época e da vontade dEle.
Por certo não faltariam os adultos, Aninha, a imporem hora pra criança
dormir, o que comer e quando, o que vestir e o que falar. Estaria certo isso,
Cora, digo, Aninha? Talvez me ajoelhassem no milho se descobrissem o meu plano
secreto de fuga - pura curiosidade - pelo leito seco do rio, numa manhã
qualquer. Estaria saudoso o rio, estaria: menos das águas e mais do colorido
das rodilhas nas cabeças das mulheres, da meninada pulando, "tibum"!
e dos peixes silenciosos nos seus requebros muito alinhados.
Por fim eu encontraria o mar: Copacabana, Santos, Guarujá, tanto faz.
Importa que eu sentiria saudades. Talvez pelo que agora se prepara lá
na cozinha, e eu sei pelo barulho dos talheres: é para esta criança
que eu não fui, lá no passado. Está escrito. Cristalizado.
Só mais uma coisa, Cora: - Seria de laranja da terra, o doce, certo?
É querer muito?
Audácia maior seria dizer que o bebê dessa história eras
tu, Cora,
e o doce, ora vejam, feito por mim, mão cheia em abrir vidros
de compotas.
(17.10.05)