A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

O mistério do meio terno

(Cissa de Oliveira)

(short story para o Valdez)

A propaganda na televisão era em preto e branco e dizia maravilhas sobre a pasta dental: "Kolynos!!! Sorriso brilhante vinte e quatro horas por dia!" E uma estrelinha aparecia momentaneamente nos dentes perfeitos das pessoas sorrindo. A impressão que ele tinha era a de que sorriam pra ele e então correspondia, afinal para um menino que ainda achava que dentro da televisão viviam minúsculas criaturas, aquelas palavras eram como a água quando cai sobre o papel crepom. Tempo bom, aqueles de soltar pipa colorida, enfezar o gato, colecionar figurinhas, selos, tampinhas, e mais tarde, os gibis. Vez em quando, por curiosidade mas também por preguiça de escovar os dentes, aquele anjo comia a milagrosa pasta. Se alguém lhe perguntasse o porquê, ouviria: - Por que nunca aparecia a estrelinha nos seus dentes?

Na adolescência descobriu que pasta dental era tudo igual - embora inexplicavelmente preferisse aquela de embalagem amarelada - e que as estrelas podiam morar em dois principais lugares: na escuridão do céu e nos seus olhos enamorados pelas mocinhas quando passavam. Foi o tempo dos bailes, das farras, das festas, noitadas, do tempo passando devagar, como se nunca fosse acabar, e do primeiro e fatal "contigo aprendi, que eu nasci, no dia em que te conheci..." Depois dessa época, penso que ele escovaria os dentes nem que fosse com juá. Ficou cuidadoso. Vaidoso. Criterioso. Trabalhador.

E era no escritório que ele se mostrava na totalidade. Responsável. Aprumado. De terno e gravata, camisa branca engomada e abotoaduras. Mais um pouco e a impressão que se tinha era a de que algum detalhe a mais nasceria ali, enfeitando a lapela esquerda. Mas isso ele deixava para os dias festivos, quando, aliás, usava o terno por inteiro. É isso mesmo, no dia a dia a elegância era da cintura pra riba. Água abaixo era calção, perna peluda, chinelão. Dir-se-ia que um menino, ainda soltando pipa morava por ali. Um capetinha enfezando os gatos, um adolescente azarando as gatas. Se alguém lhe perguntasse sobre o mistério do meio terno ouviria: - Achas que é fácil ser adulto e vestido, na cidade com a temperatura mais elevada do Brasil?

Depois, sozinho, abria as janelas. As gavetas. Dentre o silêncio das tardes, dos grampos, canetas, apontadores, canetas e etc, ele procurava alguma coisa que nunca achava. Desse mistério eu não sei contar.

(Da série: "Deus e o demo na terra do silêncio", 23.10.04)

Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente