Para o Ariano Suassuna
- Eu tenho vontade é de cuspir nesse vestido e a culpa é do
Ariano Suassuna! Foi sem pensar mas foi o que eu disse, enquanto sentia
a textura pegajosa do tecido, causada pelo "pancake", que na verdade
nada mais é do que uma base sólida que a minha filha usa normalmente
no teatro. Ela tem de várias cores mas a que me refiro no momento é
uma da cor de terra, usada por ela para envelhecer ou sujar o vestido da Nevinha
velha, personagem de "A farsa da boa preguiça", de Ariano Suassuna.
A minha filha tentava explicar como é que ela queria o ajuste no vestido
comprado num brechó. Dali não dava para ela passar porque a máquina
de costura estava estatelada no meio do escritório. Do lado direito,
a bancada soterrada de livros, cadernos, papel, computador, apostilas, e do
lado esquerdo uma estante alta com mais livros, cadernos, papéis, apostilas.
Isso pra não falar dos porta-retratos, relógio, pedrinha furta-cor,
Budha, Cristo Redentor, caixinha de CD, caixinha de disquetes e mais as pastas.
Ah! como existem pastas nessa casa!
Ariano... - eu falava como se fosse com ele e não com a minha
filha parada na porta do escritório - onde já se viu fazer
isso com a personagem? Foi essa a segunda asneira da noite, proferida em
alto e bom tom. Sim, já era noite e esse bem podia ser o motivo do meu
destempero, e mais a feitura dos slides da minha defesa de tese que eu tive
de interromper para arrumar o vestido da Nevinha quando velha.
- O Ariano detesta gente "assim", sabia? Acho que eu sabia.
Já li entrevistas dele. É mais direto do que linha reta. Se ele
ia me detestar eu não sei, e o fato é que mesmo resmungando eu
ajustei o vestido da Nevinha velha e ainda fiz um saiote para a Nevinha nova
pois o tecido do vestido dela - esse totalmente costurado por mim - era tão
leve, tão leve, que segundo a minha filha ficava transparente no palco.
É, isso não combinaria nada com uma personagem recatada, não
combinaria.
Levou tanto tempo a arrumação que o meu sangue foi se aquietando
nas veias, acho, embora os meus pensamentos estivessem mais para o zunido do
motorzinho da máquina de costura. Hummm... Ninguém devia envelhecer
assim.... não devia, viu Sr. Ariano Suassuna! Eu conhecia quase toda
a peça porque já havia repassado boa parte do texto com a minha
filha, mas o final, esse eu não sabia. A Nevinha, tão íntegra,
envelhecer assim?
Ao menos ela se casou com um poeta... era nisso que eu pensava quando
passei pela sala onde a minha filha assistia televisão, e como aquela
parecia ser a minha noite de falar umas boas asneiras, cantarolei: -"...
é isso o que acontece, se casar com um poeta..."
Ela riu. Entendeu que aquilo era uma referência ao Simão, poeta
e marido de Nevinha. Depois, sabe como é, vestidos resolvidos, pazes
feitas. E então eu logo quis saber sobre o final da história.
- Agora só vai saber no dia da peça, e completou: - Bom, acho
que você não vai mais querer ler o "A Pedra do Reino",
certo?
- É claro que eu quero! ... mas o Suassuna, o Suassuna que se cuide!
(28.08.05)