A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Queria achar um caminho com pomares de sonhos eternos

(R. Carvalho)

Queria achar um caminho com pomares de sonhos eternos, com o aroma da verdade, em que os seres humanos pudessem delivrar sem qualquer limite terreno. Apenas voar planetas outros. Abrir as asas e subir muito, muito alto, tal como as águias nos túneis de ar quente. Aprendi, hoje, que nasci sem meu lado social, nasci para ficar assim, ilesa ao convívio diário das rotinas pegajosas e medíocres. Meu orbe é diferente, é amargo, tem sabor de raciocínio, de não às ilusões. Não há o que sonhar e nem mesmo ser feliz por muito tempo. O egoísmo é comer e sorrir e ali bem na esquina alguém sem dentes revira o lixo atrás de comida. O mundo continua dividido. A cama confortável que durmo é o chão duro daquele menino de rua. O altar da igreja católica traz santos e mais santos, o altar da igreja evangélica coloca no altar pessoas que se dizem santas sem nunca terem sido. O mal está no inconveniente, no sorvete, no canivete, no pivete, no chiclete que se masca, masca, masca e não se engole. Não engulo essa fantasia de viver, essa ilusão de falsificar a realidade.

Olhem com firmeza, olhem sem máscaras, olhem sem medo; a realidade é a sua vida por dentro, dentro de sua mente. Como somos sujos,como somos aniquilados pelo egoísmo, a maldade e a vaidade. Como somos tão delimitados pelos valores demagógicos. Como temos pensamentos deturpados.Qual parâmetro se usa para analogias. O que realmente é ou não é alguma coisa. Até onde valem os valores de outrem? Como os caminhos são curtos e repletos de retornos, cada um mais dolorido que outro. Quantas vezes pegamos a mesma via. O acesso fácil, errado. Como sonhamos errado, como sonhamos sem perceber. Erradas são as expectativas. O mundo é paradoxal. O papa condena tudo menos a pedofilia. Menos a adoração de santos de gesso, madeira, argila e metais. As idéias vagueiam de continente a continente. Uns buscam, outros esperam; uns matam, outros nascem sem parar. Tantos foram embora. Tantos amaram tanto que desistiram do seu próprio sonho. Até onde terei de existir? É tedioso existir com tantos pensamentos. Não tenho qualquer ilusão, sei o chão em que piso. Sei a lágrima que se esconde. Sei do chão onde o café caiu. Sei o cheiro do mato molhado. Do capim gordura, dos eucaliptos. Sei do cigarro que se apaga debaixo do pé. Sei do estacionamento sem vaga. Sei o quanto ainda tenho para viver e aprender. Há tanto ainda para mudar em mim. Queria ver o céu de cabeça para baixo, as aves de outros planetas.

O mundo está a se acabar. A Amazônia já está sendo questionada e estudada pelo resto do mundo. Preocupação mundial. Preciso dormir e tudo esquecer. Esquecer que existo. Toda luz se queima um dia, todo gás acaba, toda pia recebe sua gota, os talheres são enxugados. As portas são abertas e se fecham todos os dias. O cotidiano é a rotina que poda as inovações. O corpo tem que ser mais forte. O corte tem que ser raso para doer mais. O fundo do poço está seco. Seco anda o varal com as roupas. O esmalte ainda não secou. O tempo virá muito mais que hoje. Muito mais que hoje você estará mais velho. O velho anda pela calçada em busca do sol. Os risos estão nas bocas. Minha vida não nasceu para andar com vocês. Estou sempre pelos caminhos que não se entram sem a senha do diferente. Um dia serei alçado, para bem longe daqui. Um dia serei liberta. Um dia estarei fora dessa engrenagem. Um dia minha alforria virá. Serei uma escrava salva. Estarei sem algemas invisíveis. Vi um policial reagir a um furto que se tornou um roubo qualificado em homicídio. Quem morreu? Não foi o assaltante. O restante é tudo aquilo que não queríamos para nós, mas fica. Quem fica mais de uma hora diante de um túmulo? Só os que deixam a saudade alastrar pelos poros e perde a noção do respirar na ausência dos que se amam eternamente. Respirar é esquecer, esquecer os momentos tristes e beijar a alegria passageira.

Tem cor que se esvai com o tempo. Toda areia que bate no rosto corta mais um pouco dos sonhos. Quanto mais caminhamos no deserto mais vamos perdendo sem saber valorizar o que todos anseiam ter. Longe é um lugar que não existe, disse o senhor Richard Bach. Descordo. Longe é um lugar que existe e pode ser a exata distância de teu âmago para o meu. Toda curva tem uma reta a seguir. Sigo, apesar das curvas. Turva está a visão na enseada. Acaba de haver um deslizamento. Escorreu gente para todo lado. Tem dias que parecem nos sucumbir de vez. E dormimos mal. E a insônia cai de quatro em cima da gente. A cama parece ficar menor. Os desejos parecem desaparecer. O medo fica retido no nada. Embalsamo da alma. Não andamos. Refletimos. Parece que toda busca vira ilusão. O mundo parece uma grande ilusão. Quando parece que tudo vai dar certo, o certo é que tudo foi desenhado mal, foi calculado mal; a postura estava errada, o raciocínio ficou longe dos pés, o alçapão não funcionou e quem acabou trancafiado na vida fomos nós mesmos. Os mesmos que edificaram uma construção com pilares condizentes com a situação. Tentamos reconstruir. Todos os dias estamos reconstruindo forças e desejos. A libido quase explode meus miolos em certos dias que a companhia desejada não pôde ficar comigo. Como há dias que, muitos dias, que pareço uma ponte iluminada, estática sobre um largo rio.

Ninguém me atrai. Ninguém me tira da penumbra. Ninguém desperta nada. Fico só e bem. Bem melhor que gerando ilusões ineptas. Nós mesmos construímos a decepção. Parece que sempre saberemos nada. O nosso mecanismo espiritual é sempre um enigma. Um mistério que não se revela. Que não se pode confiar. Tudo muda de repente e nunca estamos preparados. Pensamos ser fortes e capacitados para tudo e de repente estamos ao chão de novo. Quantas vezes parece que o capim vai crescer e só o que vemos é a seca a exterminá-lo. O mundo me assusta, as pessoas. O modo como somos descartados, quando não mais precisam de nós. Mas conseguimos viver diante de tantas cenas indigestas. Diante de infinitos desejos banidos do coração, da noite para o dia. Quanto mais se vive mais se descobre dentro de um manto de ilusão, agasalhados de fantasmas que são os espectros que insistem em nos fazer seguir rumo ao desconhecido. Conheço apenas trilhos mal acabados. Todo tanque tem roupas ou munições. Fica ao seu critério a opção exata. Exatidão.

A cultura racional tudo quer imunizar. Imunizar a mente da servidão humana. Dói-me o viciado. O dinheiro não pode, de verdade, comprar a paz interior e quem quer paz interior? Querem o exterior em paz com a vaidade cumprida. Ainda acredito no sono tranqüilo. Uma modelo figura como uma das maiores riquezas do mundo. A vaidade. Ainda acredito no sono tranqüilo. Dormir sem chorar e sem pedir nada a ninguém. Jogar o corpo no mundo ignoto. O sono. O estancar de tudo. O mundo se aglomera numa proliferação de filhos. O espaço geográfico ficará escasso. Ainda bem que morremos. Vejo-me ilesa à morte. Morreria tranqüila. Foi o que percebi hoje, em um pequeno acidente com veículos. Morreria tão calma. Nenhum asfalto pode me tirar a paz. Ninguém pode entender a música, o sono, o infinito, o imo. A música é o pedaço do coração de alguém. Alguém que materializou o sentimento. Um pedaço de gente é a música. A simbiose, a aglutinação perfeita do sentir sem maltratar, apenas hidratar as veias sensíveis. Sinto que os dias passam sem verdade. Ignomínia. Mania de olhar para trás e estagnar. Tem gente que usa gente. Tem gente que tem dinheiro e não tem qualquer bom gosto e nem tem bom humor. Vá entender os pobres que vivem rindo.

Toda noite alguém ora. As horas não cessam. Quantas voltas os ponteiros desenvolvem em toda sua vida útil? Quantas voltas a terra dará em volta do sol até que ele se esfrie? Quanta volta precisará dar para confirmar que sempre serei triste? Não consigo reter a vida em um só ponto, evento, momento. A linha que se solta leva a pipa pelo ar. Leva as expectativas do menino. Tem gente que nunca soltou uma pipa, nunca foi ao estádio, nunca matou um passarinho, nem deu um susto em alguém. As oportunidades voam sem linha, sem acesso, sem vontade, sem liberdade. Ao lixo tudo irá um dia. O que escrevo de nada servirá. Ninguém terá acesso, mas tentei. Tentei não ser massa. Tentei não ser você. Tentei ser livre. Tentei não me moldar. A natureza humana tem o odor do lixo. Faces angelicais, máscaras, interesses, fetiches, ironias, superioridade, mesclas, demagogias, inexistência de valores eternos. Do lixo se fez ao lixo retornará.

  • Publicado em: 23/01/2007
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