A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Déjà vu

(R. Carvalho)

Cenas retidas na imagem da porta. A cada suspenso degrau, a miséria me afronta e retorce minha tristeza insolúvel. Nem sei se o retrós está com linha. Fragmentos daquela mulher ficaram sobre o asfalto. Consigo erigir meu cadáver nas areias do Egito. Procuro a senha para entrar ao céu. Estrelas outras me impedem de adentrá-lo. Ainda tenho que ficar e observar os vãos raciocínios dos seres eqüevos. Soletro uma música na mente. Apenas o silêncio ressoa. Fico estática à poltrona. Há patos na lagoa. Voou o marreco. O pão se deteriora nas águas opacas da represa. Extinção é o lugar que foi metamorfoseado pelo homem. Camada de ozônio cada vez mais rarefeita. O relevo cada vez mais impreciso. Os fenômenos físicos mais radicalizados. É o preço da natureza destruída. Um desditoso planeta de feições deformadas pelo ilimitado egoísmo. Piso o cimento sonhando com as algas. No canto da sala o piano toca a sinfonia da estação neutra. A estação dos distúrbios. O definhamento terrestre. Posso assistir, através da vidraça, o pânico de meu olhar refletido em néon. Deus sussurra em meus ouvidos. Fico arraigada ao silêncio. O velcro prendendo todas as atitudes humanas. Sinto o peso da perda, não há mais retrocesso. Vejo a aflição dos pássaros por não acharem lugar algum para pousarem. Vivem, rasteiramente, nos sobejos das cidades. Vejo o gato, sabiamente, introspecto. Não há mais direção nos olhares. Todos olham com um vazio recôndito. Uma energia destruidora carrega os sinais dos tempos profetizados. Desde de que, aqui coloquei os pés, senti pânico. Não teria como viver com meus preceitos e sentimentos. Sabia que a vida não seria vivida como o Pai pediu. Não há peito sem egotismo. Não há lã dentro da seda, nem casulo com inseto são. Não há seita certa, nem fiéis confiáveis. Não há sentinelas na vida, nem anjos na morte. Mataram cedo demais as crianças sensíveis. Tudo encaminhou-se para o fim. Final dos tempos. Tudo foi racionalizado, esqueceram a alma, a essência espiritual. Tudo tão nítido e tanta ignorância. Evoluíram para o final de sua própria casa. Destruíram seu próprio lar. Quão inteligente os seres humanos! Tantas ciências, descobertas, inovações, invenções e a total cegueira espiritual. Todo olhar queima o combustível da alma. Os homens possuem reserva atroz de combustível. Explodirão de seu próprio tanque cheio. Combustão humana. Carbonização. Os pára-raios de nada servirão. Os icebergs líquidos ficarão. O avião tentará decolar sem ver o céu. O navio tentando atracar sem mais ver terras. O radar, o míssil, o ônibus espacial, o trem bala, o metrô, a internet, o abrigo antinuclear, o HGP, o grão transgênico, o fast-track , o celular na mão sem ter para quem ligar. Portentosas invenções, agora, inúteis. Locomovo-me com um lapso do pensar. O que aguarda os seres terrestres é muito mais do que nossa capacidade limitada pode, aqui, expressar. Há pouco tempo. Haverá dissoluções. Outra ração. Outra existência. A nossa caminha para nossa própria destruição. Ilhou-se numa atmosfera de total poder e assim, vaidade. Tudo é vaidade. No entanto, há aves no jardim. Há luzes no universo. Há infinitas estrelas. Há infindos pensamentos. Há inesgotável fonte divina. Há diferenças. Há cobranças. Há dúvidas. Há caminhos diferentes. Há diferentes seres. Há opções. Há separações. Há planos divinos: Déjà vu - (Expressão francesa para designar situações que ao vivê-las parecem já ter acontecido antes).

  • Publicado em: 14/07/2007
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