A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Amor exato

(R. Carvalho)

Quisera entortar as retas de um retângulo, retirar seus ângulos quadrados, fazer da geometria um poema de formas irracionais tal como é o sentimento amor. Linha paralela que não se encontra, base que não beija o topo, linhas que se aglomeram no espaço e no tempo e acabam por gerar figuras disformes. Linhas que amam o horizonte e seu sol, mas tombam em nuvens possessivas, em sobras e sombras de iras configuradas com a luz do sol. Linhas que tentam invadir um círculo fechado, uma pirâmide sem entradas. Só a energia vaza do espaço e une criaturas e molduras. Somos traços não geométricos, somos traços largados às traças, como assoalhos que se quebram a cada pisada a mais. Não temos caminho certo, nem amor certo, ainda agora, nesse século de valores inversos, nenhuma geometria poderá descobrir o que realmente é uma unidade de medida. Tudo se baseia em hipóteses, numa desconstrução de signos que nos leva a crer que nenhuma criatura consegue amar de verdade sem cair nas curvas de uma estrada sem dono e sem mistério. A morte é um mistério não revelado. As torres do xadrez podem ser de vidro ou qualquer outro material, mas o amor, esse sentimento que balança entre sol e sombra; entre sorriso e dor; entre querer e não querer, mais parece uma dama a comer sem ver peças mais íntimas.

Não podemos esquecer os triângulos amorosos ou mesmo os paralelepípedos daquela ladeira onde o amante de Eça de Queirós se encontrava com Luísa, uma dama que se perdia num tabuleiro de romance realista. Ainda temos as cartas, carta de Pero Vaz de Caminha, carta de alforria, carta última de Getúlio Vargas, carta cartográfica que mostra onde estamos no espaço geométrico de minhas retinas em elucubração. Daria todos os dados para saber com quem seria feliz. Como queremos alguém perfeito, não? Você não gostaria de ter seu amor modificado em vários ângulos? Não gostaria de um isóscele? Aquele triângulo de lados iguais? Alguém assim que pudesse nos adivinhar cada aresta? Pois é, o amor pode ser contado também em ciências exatas. Era da interdisciplinaridade. Troquemos a metalinguagem. Teremos uma aula de retas e curvas que o amor provoca. Há maluquinhos que soltam os freios e se lançam em desatino nas curvas ao levar um grande fora da namorada. Há bêbados que se isolam na dormência ou demência quando o amor se esvai pelos quatro cantos do mundo? Será o mundo quadrado para ter cantos?

Mas os amores continuam pelas linhas da palma da mão lida pela cigana, pelas linhas digitadas no Orkut, pelos semblantes reluzentes de um trapézio repleto de desigualdades gritantes. Mas cada um está no seu mundo, na sua sociedade, é assim o estudo agora. Cada comunidade tem que viver de acordo com a realidade de seu quadrado. Não há mais vilas, há comunidades, pequenos quadrados, círculos, retângulos, ou mesmo figuras amorfas. Não se deixe mofar, trace sua linha, seu desenho, seu círculo de amigos, invente uma namorada, uma figura bem contornada, com as formas perfeitas, mas não se iluda, sempre o amor será duas retas paralelas que tentam se encontrar, mas um carrossel desfila beijos diversos nas micarês. Beijos que dançam ao som do não compromisso, do não ao namoro; do sim, aos desenhos livres, aos poemas livres, aos dialetos livres, aos afetos livres, ao riso e desprendimento das linhas do amor exato. Amor de linhas paralelas que talvez se encontre no infinito: aquele oito deitado que nunca se levanta. Retas não existem. Então acredite: Amor exato é aquele que você precisa ignorar erros e conviver com várias curvas. No final são puras medidas de prevenção que não funcionam. Todos estão sujeitos a sofrer de amor.

  • Publicado em: 12/06/2007
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente