Ela pegou suas chaves, abriu a garagem com seu controle, saiu mais uma vez para
o mundo. Deixou Nietzsche no assento traseiro, não queria, pelo menos
naquele dia, deixá-lo bem na frente, sem cinto de segurança, sua
segurança estava tão indecifrágil, quanto os signos do
autor de Gaia.
Talvez pudesse olhar o mundo, hoje, com os olhos do carroceiro ou do pessoal
da limpeza urbana, quem sabe até com o olhar sistemático do velho
da esquina sentado no boteco às 7 da manhã.
O que quer que fosse acontecer hoje, seus olhos não queriam ver suas
entranhas, polvilhavam espectros nunca resolvidos, sua impotência literária
a obrigava a carregar Nietzsche no assento traseiro.
Podia ver no seu olhar pelo retrovisor o quanto ela se afastava das ruas e contemplava
seu interior sem medo de chocar-se com o veículo em sua frente, estava
tão ausente de tudo que nem mesmo a luz do sol incomodava seu olhar distante.
Tinha sede de molhar os vidros do carro, encher o tanque, pegar a estrada sem
endereço certo, partir, partir para bem longe de Gaia, ir bem além
desses signos limitados e desconstruir muitos polissíndetos para escrever
o que sentia.
Vez ou outra olhava Nietzsche no assento traseiro e pensava nesse homem que incitou
filósofo, incitou poetas, incitou homens e mulheres, incitou todos nós
que o olhamos no assento traseiro de nossos carros em declive.
Siga em frente, dê a preferência, aclive, mão única,
ventos laterais, curva perigosa, animais silvestres, velocidade máxima,
mantenha distância de tudo aquilo que não podes curar. Que não
podes ultrapassar, que não podes escrever, que não podes infringir.
Há postos que podem nos abastecer, mas ela vivia com a mente cheia, cheia
de tantos esquemas, pensamentos, mas não conseguia ultrapassar as regras
das vias, seguia todas as placas de sinalização sem ultrapassar
um semáforo.
Talvez um dia carregue Nietzsche ao seu lado e entenda que ter escolhas não
é tão ruim assim, que náuseas são para Sartre e
que ânsias de vômito pela bondade pertence à Clarice, talvez
Drummond explique o bicho homem, talvez ela explique as elucubrações
autofágicas, talvez ela carregue Kafka em suas metamorfoses, talvez ela
acabe em sarjetas, talvez ela, algum dia, entenda que assim como nas estradas,
existem muitos sinais também na vida nossa de cada dia, existem sinais
metafóricos nas lacunas da mente.