A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Controle Remoto

(R. Carvalho)

Ela pegou suas chaves, abriu a garagem com seu controle, saiu mais uma vez para o mundo. Deixou Nietzsche no assento traseiro, não queria, pelo menos naquele dia, deixá-lo bem na frente, sem cinto de segurança, sua segurança estava tão indecifrágil, quanto os signos do autor de Gaia.

Talvez pudesse olhar o mundo, hoje, com os olhos do carroceiro ou do pessoal da limpeza urbana, quem sabe até com o olhar sistemático do velho da esquina sentado no boteco às 7 da manhã.

O que quer que fosse acontecer hoje, seus olhos não queriam ver suas entranhas, polvilhavam espectros nunca resolvidos, sua impotência literária a obrigava a carregar Nietzsche no assento traseiro.

Podia ver no seu olhar pelo retrovisor o quanto ela se afastava das ruas e contemplava seu interior sem medo de chocar-se com o veículo em sua frente, estava tão ausente de tudo que nem mesmo a luz do sol incomodava seu olhar distante.

Tinha sede de molhar os vidros do carro, encher o tanque, pegar a estrada sem endereço certo, partir, partir para bem longe de Gaia, ir bem além desses signos limitados e desconstruir muitos polissíndetos para escrever o que sentia.

Vez ou outra olhava Nietzsche no assento traseiro e pensava nesse homem que incitou filósofo, incitou poetas, incitou homens e mulheres, incitou todos nós que o olhamos no assento traseiro de nossos carros em declive.

Siga em frente, dê a preferência, aclive, mão única, ventos laterais, curva perigosa, animais silvestres, velocidade máxima, mantenha distância de tudo aquilo que não podes curar. Que não podes ultrapassar, que não podes escrever, que não podes infringir.

Há postos que podem nos abastecer, mas ela vivia com a mente cheia, cheia de tantos esquemas, pensamentos, mas não conseguia ultrapassar as regras das vias, seguia todas as placas de sinalização sem ultrapassar um semáforo.

Talvez um dia carregue Nietzsche ao seu lado e entenda que ter escolhas não é tão ruim assim, que náuseas são para Sartre e que ânsias de vômito pela bondade pertence à Clarice, talvez Drummond explique o bicho homem, talvez ela explique as elucubrações autofágicas, talvez ela carregue Kafka em suas metamorfoses, talvez ela acabe em sarjetas, talvez ela, algum dia, entenda que assim como nas estradas, existem muitos sinais também na vida nossa de cada dia, existem sinais metafóricos nas lacunas da mente.

  • Publicado em: 28/08/2007
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