A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Sílvia

(R. Carvalho)

Tinha um gosto proibido, mas sentia suas mãos suando nas poesias feitas na derme da inquietação. Fluía um gosto não seguro, não acabado. Um gosto que ainda não se perdeu pelo tempo. Ela não permitiu e fugiu de si. Lacrou-se no não permitir o gosto de uma viagem ao ar livre. Um vôo estruturado na fantasia obstruída pelas rotas não planejadas. Um gosto que conquistou o paladar e o querer sonhar. Dupla mão de sentidos escondidos. Um mar aberto que navega ilhas e mais ilhas repletas de oásis.

Sílvia sentiu o rosto queimar no som dos anjos que a chamavam para bailar em nuvens de paz e amor. Ela sentia de longe o que ninguém por perto lhe deu. O gosto da aventura pelas tamareiras, pelo vento de areia a recortar o tempo. Tempo de levar as crianças na escola. Tempo para cozer para o marido. Tempo para digladiar suas fantasias com as roupas sujas que jogou na máquina de lavar. Lavar todos os recônditos sonhos e desejos lacrados no bolso de suas vestes. Ela não queria sonhar, mas insistia em ouvir uma voz longe, muito longe, que atravessava sua rotina e a abençoava com falas edênicas. Sílvia sabia que entre Sampa e sua moradia havia uma ponte que a levaria do outro lado do mundo. Ao deserto repleto de oásis que ela nunca se permitiu encontrar.

Talvez ela nem mais se lembre desses vôos que sua mente ansiava e se perdia em medos, desses vôos que a levava em sonhos azuis, em cristalinas sensações de algo muito além do amor que conhecia. O medo a reprimiu, a represou, a deixou na mansa rotina de suas rédeas não soltas. Ela parou de sonhar, lacrou o número de sua ligação com o sonho maior.

Ela nem percebeu, mas ainda há, do outro lado da terra, um lugar que ficou com ela, um lugar que ainda a escuta , um lugar que ainda sabe que ela existe e que bem lá no fundo comunga suas aspirações, um lugar que ficou parado, gravado, um lugar só dela. Um oásis de uma ilha deserta, que se perdeu no mar, mas ainda assim, lá onde as ondas se espremem, onde se batem, é justamente, onde Sílvia ainda vive e faz o mar sonhar.

Não esqueça das areias, dos orelhões, das fardas, das noites, do shopping Cultural Ática de Pinheiros, nem esqueça das sensações dentro de um carro ao ouvir dentro de seu coração, uma voz que insistia em deixar no seu mundo, um risco de seus desenhos, de seus desejos, um risco de amor que explodia em sua sintonia e conhecia o solitário gosto das águas salgadas do seu medo e de seu segredo.

  • Publicado em: 30/07/2007
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente