A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Sem título

(R. Carvalho)

Diante do trono de Deus argumento-me como um soldado esquecido ao largo do continente, escalando uma curva retilínea aos meus sonhos, como se nunca fosse dar de cara com meu rosto. Onde foi que a humanidade errou, onde foi que o povo se esqueceu de tudo que aprendeu. Onde foi que trocaram amor pelo ódio mortal. Onde foi que nossa natureza maléfica despencou rio abaixo e nunca mais parou de jorrar seus jatos repentinos de ignorância. Travaram todo sistema erguido no início de nossas curvas. Deletaram memórias preciosas que em outro tempo faziam juz ao diâmetro do mundo. Infinito quarto que nem Kaspar Hauser poderia entender.

Olho ruas, casas, carros e nem vejo mais ser humano, as ruas floridas pela alegria livre de viver permutou-se ao comércio livre das grades e portões eletrônicos. A distância entre nós ilimitou-se pela desconfiança e pelas cordas invisíveis das delimitações de terrenos, de posse, de vaidade, de salvaguarda.

Machuca-me olhar a história e ter que recorrer aos artifícios dos filósofos antigos para adentrar a realidade eqüeva de meus passos, que em nada mais condiz com o tempo em que se criou o esconde-esconde. Não brincamos mais de ágora, nossas brincadeiras diluem-se, às vezes, em crimes. Qual mudança se formou em nosso cérebro? Qual mudança se formou em nossa mente? Qual mudança se derreteu em nossas bocas molhadas de prepotência? Não há mais realidades para se criar, apenas moldamo-nos feito argamassa de construções cada vez mais vaidosas. Alastra-se junto à vaidade o poder único de ser sempre o melhor e maior. A vaidade caminha paralela à sensação desastrosa do poder. O culto a sua personalização. A exposição viva de manequins desenhados pelo consumismo e pela ideologia reinante. Modelos impostos pela aparência de todo um jogo profundamente lançado fora de nós. Nós que nascemos para pertencer a um sistema em perfeitas condições de vida, em todas as mínimas necessidades de sobrevivência, estamos adentrando um desequilíbrio cada vez mais acentuado, em todas as áreas do existir. Qual panambi que larga o casulo teremos vôos curtos de paisagens agradáveis. Nítida é a janela dos olhares mundiais. Avistam-se prédios e remédios para os males do planeta. Continuamos marchando indo de encontro com o vento, perdendo mais do que ganhando. Rostos iguais, corpos iguais, tradução equivalente aos livros comerciais. Quando surgirá os nossos filósofos, serão eles aqueles que desistem da vida. Aqueles que sem qualquer satisfação derrubam suas ascensões em bocado de pó. Pó alienante que sufoca sonhos, que libera fantasias, que faz prisioneiros, que faz vítimas, que faz a história ser cortada ao meio, ao início e muitas vezes não há mais fim. Trocam moedas por lacres de bebida, trocam lacres de bebida por miniaturas, trocam olhares cada vez mais distantes, trocam-se em corpos de um segundo ao outro. As cores dos cabelos são trocadas em dias, as idéias são trocadas de pensar em pensar. Não precisa mais existir, vive quem quer. Muitos colam cartazes nas ruas. Panfletos vivos caminham vendendo os sobejos da vaidade. O respeito pela vida se entorna em um esgoto de egoísmo. Canaletas levam os últimos pensamentos insanos. Como discutir o que vem pronto. Como olhar a margem e saber que vazio está o centro do universo. Como segurar as mãos que não mais se importam. O mundo já está pronto, pronto para sucumbir no buraco negro de nossa camada egocêntrica. Um dia afastei meus objetos da cadeira para dar lugar a quem mais chegasse e pudesse se acomodar melhor, mas um lamento fechado eclodiu em meu peito, quando dois pés sem qualquer noção de solidariedade e ou respeito se colocaram exatamente na mesma cadeira, para que obtivesse além de já estar sentado, um conforto a mais de sustentar suas pernas esticadas num vão horroroso de um túnel sem qualquer atavio de educação. Pequenos gestos podem falar exatamente a grandeza de uma alma. Um pequeno gesto pode expor tua vida. Um pequeno gesto pode lhe transformar em qualquer gravura exposta. Uma pintura movediça, rude, amarga ou talvez alegre, quem sabe até, uma pintura cubista. O que importa os detalhes num contexto que caminha para o governo internacional. Além do egoísmo humano em patamares menores, a doença do século caiu nas mãos das nações e assim os Estados Unidos se garantem e começam a dominar o mundo de país em país. Vai comprando um a um. A manipulação chegou ao nível maior. Maior é o risco que se corre daqui para frente. Nenhuma guerra fria, apenas um modo patético de saber que se é levado como os outros querem. Estamos em mãos do vizinho cada vez mais sem saídas. Todas as portas e janelas abertas. A ponte mostra duas margens, do seu centro pode-se olhar retina direita ou esquerda, nossa visão esparge brilhos em dualidades. As dicotomias são fundamentais para a sustentação dos sistemas, mas a dualidade parece ser o sucumbir de nossas buscas no centro de uma vontade. Morre-se a cada dia que nos espreme essa dual característica de nosso ser. Morre-se mais um pouco cada noite que se deita em plano vertical. Que enterrem os mortos na vertical para desocupar terras evasivas. Há quão grande é minha angústia ao estar próxima da * A Hora da Estrela.

  • Publicado em: 28/04/2007
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