A Garganta da Serpente
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O AMOR NA VELHICE

(Olympia Salete Rodrigues)

Vejam a doçura deste poema de Cora Coralina, que vai ilustrar este papo da gente:

"POEMINHA AMOROSO

Este é um poema de amor
tão meigo, tão terno, tão teu...
É uma oferenda aos teus momentos
de luta e de brisa e de céu...
E eu,
quero te servir a poesia
numa concha azul do mar
ou numa cesta de flores do campo.
Talvez tu possas entender o meu amor.
Mas se isso não acontecer,
não importa.
Já está declarado e estampado
nas linhas e entrelinhas
deste pequeno poema,
o verso;
o tão famoso e inesperado verso que
te deixará pasmo, surpreso, perplexo...
eu te amo, perdoa-me, eu te amo..."

A Cora Coralina que todos conhecemos: aquela mulher que se descobriu poeta já bem velhinha, depois de uma vida de luta, inclusive com um casamento desastroso que ela carregou corajosamente e, só após a morte do marido, conseguiu se ver em sua enorme e verdadeira dimensão, como mulher e como poeta.

Escolhi este poema para ilustrar esta Crônica por dois motivos: o primeiro por pensar exatamente como ela ao entregar o amor ao amado. O amor tem que ser entregue SEMPRE, mesmo que não seja aceito. Porque o amor só se torna concreto se chega às mãos do ser amado. E, se não entregamos o amor que sentimos, esse amor fica maculado e se deforma, pois foi sonegado, o que, em matéria de amor, é crime sem perdão. O segundo motivo de minha escolha é sugerir reflexões sobre o amor na velhice, um direito de todos nem sempre respeitado.

Uso sempre a palavra velho (ou velha)... Não gosto de idoso ou terceira idade... Ai, isso até me dói.... rs..., pela tentativa de falsidade que encerra. A palavra velho implica numa carga de sabedoria e experiência que nos dá a vida à medida em que vivemos. E dessa carga também quero falar.

Eu, pessoalmente, recebo uma série de observações que poderiam até parecer desagradáveis e indelicadas. Só que não as sinto assim porque as acolho com serenidade. Por falar eu de amor, e por amar de verdade, muita gente entende que sou atrevida, ridícula, inconseqüente etc. etc.... E, o estranho disso é que não ouço tais críticas de pessoas jovens, mas de pessoas que estão caminhando para o auge da maturidade cronológica e atribuem a mim os fantasmas da própria velhice que se aproxima. Os jovens, em geral, admiram minha coragem de amar e declarar meu amor. Para eles, quase sempre, a idade fica em segundo plano, não influi na relação ou no diálogo. Mais ainda, eles até se declaram egoístas, querendo aprender e sorver a sabedoria do velho com quem se relacionam como amores ou como amigos. Daí eu concluir que aqueles que tentam anular o direito de amar dos velhos, estão apenas refletindo neles seus próprios medos, sua incapacidade de amadurecer o amor na medida em que amadurecem em idade.

É simples encarar a equação. Ninguém, em seu perfeito juízo, negaria ao velho os direitos todos que a vida lhe dá: comer, dormir, divertir-se, trabalhar, enfim, exercer plena e conscientemente a vida que pulsa. Por que negar-lhe o direito ao amor e ao sexo? Se isso fosse normal, certamente esses desejos legítimos e saudáveis se arrefeceriam com o passar do tempo. Se não arrefecem é porque a natureza sábia reconhece sua validade. E, pelo que constatamos, a libido não tem mesmo idade... Ela pede e grita no velho como pedia e gritava no jovem que ele foi. E como aceitar uma restrição que venha de fora? Como ceder à pressão e se enclausurar, renunciar a viver esse lado exultante do eu?

Pensemos um pouco em nossos antepassados: pais, avós, familiares que se entregaram a um marasmo na velhice por não terem força para lutar contra preconceitos terríveis e tão propalados que eles próprios os assumiam. O homem era até mais prejudicado, pois vivia perseguido pela "fatalidade" da impotência "obrigatória" depois de certa idade. E a grande maioria ficava impotente mesmo, pelo poder da sugestão. Os progressos da medicina vieram em seu socorro e hoje o problema, se aparece, é contornável. As mulheres não eram estigmatizadas por essa terrível previsão, mas o eram pelos preconceitos e se fechavam em conchas a partir de certa idade, acreditavam que a menopausa as tornaria menos fêmeas e menos desejáveis. E está fechado o círculo: casais velhos, frustrados e infelizes, apenas sentados indefesos na sala de espera da morte. E assim vimos ou temos notícias de tantos entes queridos que definharam depois de nos darem a vida, a educação, a sua sabedoria, para que seguíssemos felizes os nossos caminhos. E eu pergunto: isso é justo?

Convoco os ainda jovens para que abram suas mentes e preparem seu futuro de velhos. Só assim chegarão à velhice com a dignidade e a sabedoria que torna os velhos realistas, felizes e seguros. Seus preconceitos de hoje, se existem, os tornarão certamente velhos amargos, vítimas de si mesmos, das crenças errôneas que acumularam e deixaram que se cristalizassem.

Convoco os velhos, como eu ou mais velhos que eu, para exercerem seus direitos, esclarecer aos jovens suas posições e mostrar-lhes as verdades que viveram e que os tornaram melhores. Entreguemos o amor ao ser amado, sem vergonha e sem medo, e vivamos esse amor intensa e completamente, na alma e no corpo. Se disserem que idade não é documento..., mostremos que é sim, documento importante porque repleto de experiência e de aprendizagens muitas vezes à custa de sofrimento. Somos todos lindos, independente de aparência física, porque é linda nossa alma e linda a nossa coragem de amar! Portanto, não nos enterremos antes da hora. Vivamos, vivamos! No momento certo, outros nos enterrarão, gratos pelas lições que lhes deixamos.

Cora Coralina escreveu esse poema quando era muito mais velha que eu. Tinha o rosto enrugado, o corpo alquebrado e maltratado pela vida, mas tinha a alma lisa e pura, apesar das pauladas que certamente levou, e tinha, ao escrever, a certeza de sua grandeza como ser humano, um coração que pulsava no ritmo da própria idade. Por isso admitia que o amado a aceitasse ou não, interessava apenas torná-lo feliz por saber-se amado. Que o verdadeiro amor só quer dar!

E termino louvando essa brasileira que soube morrer amando. Exatamente como eu quero morrer, orgulhosa e valente...

(Dedico esta crônica aos jovens que serão velhos e aos velhos que foram jovens!...)


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