A Garganta da Serpente
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O MEU DIA DAS MÃES

(Olympia Salete Rodrigues)

Não fui criada com minha Mãe. Quando papai partiu, ela teve que trabalhar e não podia dar a assistência necessária ao trio de filhotes. Ficamos com vovó. Eu sentia falta, mas a via todos os dias. Até que ela foi trabalhar na Capital, tentando defender um melhor salário. Lembro-me bem de como me alegrava quando ela vinha me ver e de quanto chorava na estação quando o trem a levava embora.

No colégio se festejava o Dia das Mães. Eu, entusiasmada, recebi o encargo de declamar uma poesia. Não sei quem era o autor, mas me lembro que se chamava "Recordações". Nele, uma filha contava que quando pequenina brincava com a mãe de esconde-esconde e, quando fazia beicinho por não a ter encontrado, logo ela aparecia e a acariciava, rindo de seu medo. Um dia procurou pela mãe, não a encontrou. Fez beicinho, chorou e a mãe não apareceu para abraçá-la. Estranhou, pois os adultos lhe disseram que a mãe estava apenas brincando de esconder. Mas a mãe nunca mais voltou desse derradeiro esconderijo. E a menina ficou com raiva do brinquedo de esconder... Os ensaios correram perfeitos, eu decorara o poema inteiro e o declamava muito bem (segundo o meu fã-clube...). No dia da festa, eu não tinha Mamãe comigo. Fui me emocionando ao ver as mães das coleguinhas chegando, sabendo que a minha não chegaria. Hora de minha apresentação: entrei, muito orgulhosa, no palco. Comecei a declamar como estava ensaiado, com os gestos, trejeitos e até beicinhos... De repente, aproximando-se - no poema - o momento da morte da mãe, chorei. Tentei disfarçar, não consegui. Terminei o poema com a voz entrecortada de soluços. A platéia explodiu em aplausos. Mal fiz o gesto ensaiado de agradecimento e corri para os bastidores em pranto convulsivo. Ouvia os gritos de "bis" do público emocionado. Recusei-me a voltar, mas a freira encarregada de orientar os "artistas" me forçou e até me deu um empurrãozinho em direção ao palco. Obedeci. Não sei quanto tempo fiquei ali, cabisbaixa, apenas chorando. As palmas não paravam. Olhei para o público: muitas mães choravam comigo. Só me lembro de ter saído correndo, sem nem mesmo agradecer...

Desse dia em diante fiquei com raiva do Dia das Mães...

Já no Curso Ginasial, quando se aproximava o dia, uma festança foi preparada: muita música, várias poesias, um teatrinho infantil, comes e bebes em profusão, bandeirinhas e bolas coloridas e muita alegria. A festa estava programada para dali a uma semana, no pátio do colégio. Na classe, duas coleguinhas, eram irmãs, garotas alegres e sapecas. Enquanto a freira falava da festa, percebi seus olhinhos tristes. Entendi: elas haviam perdido a mãe há menos de um mês. Saí da sala e fui falar com a Irmã Diretora: sugeri que a festa não acontecesse por causa da tristeza das pequenas órfãs. A Irmã ficou comovida com meu pedido, mas não me atendeu, explicou que todas as outras tinham mães e ela não podia suspender a festa por causa de duas. Argumentei: mesmo se fosse apenas uma menina sem mãe, já justificaria a suspensão da festa. Eu também não teria minha mãe na festa, mas sabia que tinha minha mãe viva. Minha dor era bem menor que a delas. Ainda assim a freira não cedeu. Aceitei porque ainda não sabia brigar o suficiente..., mas não me convenci. E, em protesto, não compareci à festa...

Adulta já, chega minha filha em meio a grande alegria. Tudo era festa. Apesar da doença e de seus limites, sua infância me foi muito gratificante. Eu nunca gostei do aspecto comercial dos dias comemorativos: das mães, dos namorados, dos pais, natal etc. Mas sempre comprei um presentinho para que minha filha me desse no dia das Mães, para que ela não se sentisse diferente das amiguinhas. Ela se sentia toda orgulhosa ao me presentear, ao me beijar. Já mocinha ela pegava um desses presentes e dizia: "fui eu que te dei, né mamãe?" E eu também sempre me orgulhei ao ser festejada nesse dia, desde que ela chegou para me realizar.

Mamãe já partira faz tempo. E, um dia... a filha também partiu. Desde que se foi, apenas uma vez se lembrou que era Dia das Mães e chegou de surpresa. Quando ela ligou dizendo estar na Rodoviária, perguntei: o que veio fazer aqui? Ela respondeu, com seu jeito estabanado: "Dia das Mães, né, Mãe?" Fiquei eufórica. Nunca antes ela havia se lembrado e sequer telefonado. E aquela chegada me deu enorme alegria e imensa esperança.

Mas na segunda ela se foi novamente. E nunca mais se lembrou... A alegria voltou a ser dor e a esperança se acabou.

O Dia das Mães se descaracterizou para mim. Passou a ser tristeza. Não tenho Mamãe para festejar. Fácil aceitar, são os caminhos naturais da vida. Não tenho a filha querida para me festejar... Difícil aceitar os caminhos invertidos da vida...

Apesar da nota triste, não termino triste esta crônica. Sei valorizar o que de bom a vida me dá, quase sempre chegando por misteriosos caminhos, mas sempre trazendo alegria. E sei que amo, ah, sim, amar eu sei bem... O amor é sempre alegria, embora o pano de fundo seja sombrio. E o amor que a vida me reservou não substitui mãe, não substitui filha, não substitui ninguém. Ele é ele mesmo e seu amor tão completo compensa todas as tristezas e ausências que não pude e não posso evitar. E me sinto como todo o mundo: ninguém é somente feliz ou somente infeliz... Importante é amar enquanto vida houver!

(11 de maio de 2003)


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