Eu estava em fase de organização de um trabalho com animais carentes,
em Marília-SP. Uma luta inglória para um trabalho glorioso. Mexemos
com toda a cidade, eu e meus amigos "bicheiros": indústria,
comércio, pessoas interessadas, entrevistas nas emissoras de rádio,
divulgação em todos os jornais da cidade e até algumas
notinhas em jornais importantes da Capital. Tudo começou porque uma Universidade
que mantinha um curso de veterinária reivindicava junto à Prefeitura
a volta da terrível instituição conhecida por carrocinha,
que recolheria os animais de rua para serem cobaias. Éramos contra e
tínhamos argumentos.
Foi marcado o dia da sessão da Câmara para aprovar o projeto.
Nos mobilizamos, reunimos a população que nos apoiava e marcamos
presença naquela sessão. Eu me empenhava em redigir um documento
explicando nossa posição, o porquê de sermos contra e a
apresentação de sugestões alternativas, anexando cópia
da "DECLARAçÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DOS ANIMAIS",
proclamada pela UNESCO, a 17 de janeiro de 1978, sendo o Brasil um de seus signatários.
Foram várias noites de trabalho na elaboração do documento.
Na última noite, já madrugada, eu sozinha, terminei o trabalho
e fiquei pasma: não tínhamos decidido qual nome teria nossa entidade.
Eu precisava imprimir as cópias. Não tive dúvida, por conta
própria, inventei um nome provisório e pomposo: "Comunidade
Mariliense na Proteção e Defesa dos Animais"! E lá
fomos para a Câmara. Distribuímos o documento colocando uma cópia
em cada cadeira dos Vereadores. Assim que entraram, vimos, lá da galeria,
suas expressões ao lerem nossas informações. E repetiam
o nome aposto apressadamente ao final do documento. Alguns fizeram até
discursos inflamados: o nome que arranjei colaborou para impressionar. Mas as
notícias eram desoladoras: as cartas já marcadas, estávamos
lutando inutilmente, a questão estava antecipadamente decidida e a votação
era apenas uma rotina. Mesmo assim, continuamos. A causa era nobre: defendíamos
a vida, toda vida, que a vida era valor absoluto, não havia vida menor
ou maior, superior ou inferior. A discussão foi cerrada. Alguns Vereadores,
apenas com a leitura do documento, se convenceram de que deveriam defender nosso
ponto de vista. Por fim conseguimos que a decisão fosse adiada para a
próxima semana.
Semana seguinte, outra vez notícias derrotistas. E nós, firmes.
A Galeria lotada, cartazes ilustrativos por toda a parte. Um dos cartazes delineava
o perfil de um cão, no lugar do rabo um chumaço de lã,
fixado no traseiro do animal através de um buraco na cartolina, e os
dizeres: "Não sabemos falar, mas sabemos agradecer." Caso vencêssemos,
alguém movimentaria o rabo do cachorro por detrás do cartaz. Nervosismo
e desânimo. Alguns vereadores, convencidos da importância do trabalho,
lastimavam a previsão da derrota. Nos bastidores, faziam-se apostas.
Começada a votação, silêncio e apreensão.
Eu, nervosíssima, olhos grudados na mesa da presidência. Um dos
nossos companheiros gravava em vídeo as imagens de cada votante. Eu recomendara
que reservasse filme para aquele momento, pois a gravação seria
uma forma de pressão sobre os políticos. (Só depois fiquei
sabendo que o filme acabara antes e que cada clique da filmadora não
registrava nada. Mas a idéia de pressão estava a salvo... Muito
esperto o nosso cinegrafista!) Ao anotar os votos, o nervosismo me fez perder
a conta. Ao último voto, olhei, ansiosa, para o presidente. Ele me olhou
firmemente e declarou: "O Projeto foi rejeitado". Não acreditei,
achei que ouvira mal. Olhei para trás para entender por que todos gritavam,
pulavam, se abraçavam. Bati os olhos no cartaz: o rabo do cachorro abanava
louca e deliciosamente!
A entidade nascia naquele momento. Era a hora de partirmos para a organização
prática.
No meio de toda agitação, o telefone tocou. Uma denúncia
anônima: no Bosque Municipal morrera de fome uma anta e fora enterrada
clandestinamente no meio do mato, na calada da noite. O denunciante indicou
o local onde o animal fora enterrado.
Reuni alguns "bicheiros" e fomos verificar. Cavamos até encontrar
o corpo. Fomos à Justiça e abrimos um processo. Doze dias se passaram
até que a Justiça pediu uma autópsia da anta. Por causa
dessa triste coincidência, a anta foi "eleita" o símbolo
de nosso trabalho. E o slogan era um aviso: "Corre, Bicho, que o homem
vem aí!"
Nesse meio tempo, muitas pressões políticas nos chegaram, muitos
telefonemas anônimos nos chamando de loucos. Eu recebi um telefonema especial:
era o funcionário público encarregado do bosque. Eu o procurara
exaustivamente quando descoberto o cadáver e não o encontrara.
Pois ele veio ao meu encontro... Começou me ameaçando porque fui
à Justiça antes de falar com ele. Argumentei que tentara em vão
encontrá-lo, procurara até mesmo nos botecos que ele freqüentava,
ao que ele retrucou grosseiramente: "Eu não sou nenhum "anto"
pra ficar correndo atrás de uma anta". E foi obrigado a ouvir minha
resposta: "Ainda bem que você não é um "anto",
pois se fosse a entidade seria obrigada a protegê-lo e eu detestaria fazer
isso"...
Dois veterinários foram convocados para autopsiar a anta. Vários
trabalhadores braçais participariam da difícil tarefa do "desenterro".
No dia marcado, muita ansiedade por parte de todos nós, interessados
em apurar as circunstâncias em que morrera o animal e o porquê de
ter sido enterrado às escondidas. Após a escavação,
o encontro do corpo e sua retirada, trabalho que levou umas 4 ou 5 horas, um
dos veterinários passou em minha casa. Pedi a ele que me contasse como
foi o trabalho, 15 dias após a morte da anta. Ele me olhou e fez uma
careta de nojo. Saquei imediatamente e deixei que ele falasse. E ouvi: "Mesmo
antes dos exames já posso dizer que a anta morreu mesmo de inanição.
E posso garantir que, durante o nosso trabalho, a anta naquele estado, sua mãe
foi a pessoa mais falada do mundo!"
Esse trabalho foi uma glória em minha vida. E nunca esqueci que mataram
uma anta e Mamãe levou a fama...