Chegou-me à porta uma senhora com uma bolinha de pelo na mão:
"Esta cachorrinha estava deitada bem no meio do asfalto, num cruzamento,
por pouco não foi atropelada. Não posso ficar com ela... a senhora
pode?" Claro que fiquei com ela. Mais uma filhotinha onde já tinha
cerca de meia dúzia, que diferença fazia? E ela era muito bonitinha,
fofinha, um olhar meio desconfiado. No primeiro dia, teve um comportamento quase
padronizado: quieta, calada, meio encorujada, mas atenta a todos os movimentos.
No segundo dia, revelou-se uma serelepe das maiores, latia muito, brincava,
arreliava os outros. No terceiro dia, ganhou o nome de Joana.
Dias depois, fiquei entristecida com uma notícia de jornal: um enxame
de abelhas europa atacara um cão, aqui mesmo no bairro, e, apesar das
diligências dos bombeiros, foi impossível salvar sua vida. Li e
reli, consternada, e não conseguia tirar aquela notícia da cabeça.
O telefone tocou: uma senhora dizia ser a dona do Apolo, que fora morto pelas
abelhas. Precisava arrumar urgentemente um cão para ver se ela e os três
filhos paravam de chorar distraindo-se com um novo animalzinho. Eu disse que
tinha vários cães, era só escolher.
Ela e os filhos vieram ver meus bichos. Um dos garotos, Pedro, de cinco anos,
apaixonou-se por Joana. Aliás, a paixão foi mútua. Quando
demos pela coisa, ele estava sentado num sofá, Joana ao colo com o focinho
acomodado em seu pescoço. Ela foi, obviamente, escolhida, junto com Nina,
uma filhota pouco mais velha e muito sapeca também.
Dois dias depois Nina voltou, pois ficara doente, certamente de saudade. Joana
voltou mais tarde, mas só para completar o tratamento da sarna que fora
interrompido antes da hora. Enquanto o tratamento de Joana se completava, Pedro
a visitava e ambos passavam alguns momentos de intenso carinho juntos. Nesse
meio tempo apareceu uma fox que eles levaram imediatamente e chamaram Rebeca.
Joana recuperada, foi-se de vez.
Quando a família me visitava, trazia Rebeca e Joana. O comportamento
desta era incrível. Ela só me fazia festa quando eu ia até
o carro. Não vinha até mim nunca. Enquanto eu me aproximava, olhava
desconfiada, afastando-se, tentando se esconder. Ficava claro seu medo de voltar
para a Comunidade dos Bichos*, de se ver novamente no meio de um mundo de cães,
onde ninguém era seu dono nem ela era dona de ninguém. E era mais
claro ainda que seu grande amor era o Pedro.
Quando a família fez uma viagem, Joana desapareceu. Chegando, a mãe
pegou o carro com as crianças e saiu procurando, perguntando e correndo
atrás de qualquer pista. De informação em informação,
chegaram até onde estava Joana. Uma casa muito distante, de gente simples.
Quando Joana os viu, teve com Pedro o mesmo comportamento que tivera comigo:
tentou se esconder, só faltou dizer que não queria ir embora.
Joana inconstante ou ingrata? Não! Ela estava numa casa de uma criança
com síndrome de Down. Adorava o garoto e era adorada por ele. A mãe
da criança explicou isso à mãe de Pedro, implorando para
que não tirasse Joana de seu filho. Embaraçada, sabendo quanto
Pedro sofria, ela deixou para ele a decisão. Quando o questionou, ele,
calado até então, apenas respondeu: "O menino é doente,
né, mãe." E Joana ficou.
Tudo o que passa pela minha cabeça é difícil botar no
papel. Passa uma cadela muito mais gente que muita gente, uma cadela com capacidade
de sentir como poucos. Passam pensamentos que parecem fantasiosos, como uma
cadela fugindo para procurar o destino que lhe pertencia, algo como uma atração
irrresistível que o animal pode sentir mais do que nós porque
é puro instinto. Místico... fantasioso... mágico... não
importa. Importa Joana que encontrou seu caminho e fez sua opção.
Importa o grau elevado de compreensão da mãe de Pedro e seu respeito
pela individualidade dele e de Joana.
Pedro... Pedro-gente... Pedro calado, sério, introspectivo... Pedro
que esperou pacientemente por Joana... Pedro sofrendo a dor da perda, a ansiedade
da busca, a alegria rápida do encontro... Pedro sabendo renunciar por
uma criança doente... Pedro, que tem cinco anos! Aos cinco anos, toda
criança é egoísta e egocêntrica. Aos cinco anos,
Pedro fazendo a aprendizagem do desprendimento, da coragem, violentando-se,
abrindo mão de seu direito, negando a tendência egoísta
(e humana) de ser dono e de amar, abrindo seu pequeno coração
ao outro. Pedro de cinco anos crescendo lá dentro, um crescimento que
não pode ser medido em tempo. Pedro se preparando talvez para os sofrimentos
que a vida traz em quantidade elevada aos altruístas.
Joana-bicho, Pedro-gente. Tudo se confunde em minhas reflexões. Não
sei quem é mais bicho, quem é mais gente... Joana com uma sensibilidade
que parece exigir raciocínio, Pedro com uma sensibilidade que parece
dispensar raciocínio... A minha emoção ultrapassa os limites
de minha reflexão. Só posso dizer: Obrigada, Joana-bicho-gente!
Obrigada, Pedro-gente-bicho! Obrigada, pequenos grandes corações
que vieram ao meu caminho!
(28/07/2001)