A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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MINHA FILHA E EU: NOSSOS SORRISOS

(Olympia Salete Rodrigues)

Você ligou na sexta-feira. Entre a dor e a saudade, fiquei pensando, pensando... E me dei por mim recordando nossos bons momentos.

O dia em que você chegou. Dia 2 de janeiro. Parecia o dia de meu nascimento, o dia em que eu nascia para o verdadeiro espetáculo da vida, o dia da concretização do amor. E eu cuidei de você até você adormecer. A nossa primeira noite juntas... Eu fiquei ao telefone ligando para os amigos, olhava o relógio a cada um que atendia, dizendo emocionada: "estou participando que sou mãe há 'tantas' horas"... E todos vieram ver você, a minha neném... Trouxeram presentes, houve gente que até declarou ter inveja de mim...

Seu primeiro sorriso, no dia seguinte, parecendo me mostrar que eu fora aceita... E a primeira foto... a primeira palavra, o primeiro passinho, o primeiro dentinho que caiu e eu guardei ciumentamente, como guardei a roupinha rota com que você chegou e a flanela em que veio embrulhada...

Vejo ainda você pequenina, correndo ao meu encontro, dizendo "Mamãe linda, eu te adoro!". Eu não cabia em mim... E quando se machucava, vinha fazendo carinha de brava, pedia que beijasse o dodói... e tudo ficava bem... eu descobrindo o poder do meu beijo...

Os beijinhos repetidos na hora de dormir, como eu dizia: "o adeus prolongado".... O dia que aprendeu o primeiro palavrão, e o repetiu muitas vezes, achando a coisa mais linda do mundo. Na manhã seguinte, levantei-me mais tarde, você diante da TV vendo o "Sítio do Pica-Pau Amarelo". Olhou para mim, abanou a mão e disse: "Oi, putinha!!!" Estava exercitando seu primeiro palavrão e o entregava a mim em forma de carinho!

As birras na hora do não. A gargalhada gostosa que lembrava a gargalhada da avó que você nem conheceu. O sorriso aberto quando eu chegava de viagem e tinha sempre um presente. A carinha lambuzada do pudim que roubou na geladeira. E o dia que pegou a caixa de maisena, espalhou pelo corpo e pelo rosto, não agüentei, bati uma foto. E as festinhas de aniversário, você passava o mês todo esperando por elas. E quando chegava um amiguinho ou amiguinha de mãos vazias, perguntava: "Não tem presente?", quase me matando de vergonha...

Teve medo de trovão, até o dia em que, assim que começou a trovejar, eu corri para seu quarto, fingi ter medo também, você me olhou muito séria e disse: "Não é nada, mamãe, é só o São Pedro tirando retrato!" E seu medo acabou.

Você adorava ir para a casa da Tia Cecília brincar com os gêmeos. Um dia foi e não voltava nunca, telefonei reclamando. E Tia Cecília me contou que, de vez em quando, você olhava pro céu, apontava com o dedinho e dizia: "Mamãe, mamãe", como esperando que eu caísse do céu. Será que algum dia você sentiu que eu caíra do céu pra você?

Vivia perguntando se ficara em minha barriga. Eu explicava que não, que você não era filha da minha barriga, mas era filha do meu amor. Você disfarçava e se afastava. Momentos depois retornava com a mesma pergunta, como se o tempo decorrido tivesse mudado a nossa história. E lembro com tristeza que você nunca aceitou o saber que nunca ficara na minha barriga. Para você, isso era importante.

De repente você começou a pedir para mamar em mim. Expliquei que eu não tinha leite, para ter precisaria ter um neném e eu não tivera nenhum neném. Mas você não se conformava. E tanto insistiu que resolvi tirar esse problema do caminho: tomei você ao colo e lhe dei meu seio. Você sugou, olhinhos fechados, sugou por um longo tempo. Depois abriu os olhos e disse: "Mamãe, não tem leite". Eu confirmei: "Pois não tem, eu avisei." Quando parecia conformada, me olhou seriamente e perguntou: "E Toddy, não tem?" Não pude responder, tanto ria...

Você tinha ido ao balé. Inspirada, fiz um poema pra você. Curtinho, mas dizendo tudo que eu sentia: "Antes de você tudo foi ensaio. / O verdadeiro espetáculo da vida / começou com você!" Escrevi o poema numa cartolina e, aproveitando sua ausência, preguei na parede de seu quarto, acima da cama. Quando você chegou e viu, foi me chamar e pediu que eu o lesse para você. Li e expliquei o sentido daquelas palavras. Você não cabia em si de contentamento. Imediatamente tiramos uma foto, você olhando o poema na parede.

E tinha o lado que me amofinava: as suas fugas. De início eu achei que era coisa de criança. Mas você foi crescendo e continuou...

E depois...

Depois não interessa. Agora eu quis apenas lembrar os nossos bons momentos. Mesmo chorando como estou...

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