Era o dia das mudanças na telefonia. Ligava a TV e só tinha reclamação
dos consumidores. Ninguém conseguia linha. Era muito complicado. Um montão
de números. Provedor daqui, provedor de lá, grande confusão.
Eu não tive problemas. Fiz dois interurbanos, tudo certinho. Por mim,
mudança aprovada.
Estava curtindo um livro de poemas, o telefone tocou.
- A Telma está?
- Aqui não tem nenhuma Telma.
- Xiii, caiu errado. É de Rio Preto?
- Sim...
- Que número, por favor...
Dei o número.
- Tá errado mesmo. O número deve ser outro. É essa confusão
dos diabos. Não sei por que mexer em time que tá dando certo...
Mas a senhora me desculpe. Estou falando do Rio de Janeiro, aqui ninguém
consegue ligar. Desculpe tê-la incomodado.
- Ora, Senhor, não seja por isso. Se quer o número da Telma que
procura, passe-me o nome completo e eu procuro na lista.
- A senhora faz isso?
- Claro, não me custa nada.
Passou-me nome e sobrenome. Não constava da lista da cidade.
- Infelizmente não consta da lista. Então não tenho como
ajudá-lo.
Despedidas. Agradecimentos. Disse até "muito prazer"...
Voltei à minha leitura. Mas na verdade estava pensando no moço
educado e fiquei com pena dele por não conseguir achar quem procurava.
Pouco mais de quinze minutos, o telefone toca novamente. Já no alô
conheci a voz.
- Sinto muito, o senhor ligou errado novamente.
- Não, desta vez não liguei errado, não. É com você
mesmo que eu quero falar.
- Comigo? Pois não...
- Sabe, eu fiquei impressionado, você é muito delicada e prestativa,
não é fácil encontrar gente assim.
- Ora... obrigada... Em que posso ajudá-lo?
- Em nada, não me interessa mais falar com a Telma, fiquei com vontade
de falar com você. Pode ser?
E rolou um papo longo, muito sem jeito no começo, apresentações,
eu sou assim, eu gosto disso ou daquilo, notícias sobre o tempo, perguntas
sobre a cidade de cada um e coisas que tais. Dele ouvi muitos elogios, como
se me conhecesse há tempos. Não podia retribuir, a não
ser o que já constatara, era delicado e gentil. Então falamos
de nossas preferências, principalmente em termos culturais. Percebemos
que tínhamos algumas identificações, o que fez o papo se
prolongar. Ao final, pediu-me licença para ligar mais vezes. Deixei-o
à vontade. Sim, disse chamar-se Renato e eu dei meu nome verdadeiro.
As ligações foram se repetindo, se repetindo, até me acostumei
e confesso que ficava esperando por elas. Sabíamos razoavelmente um do
outro. Contávamos piadas, ríamos muito, falávamos de nossos
amigos e de amores passados. Os telefonemas passaram a ser muito importantes
pra mim. A amizade parecia consolidada quando, não mais que de repente,
nem sei explicar como, o sentimento foi ficando parecido com amor. Ambos atingidos.
Ambos alimentando e o amor crescendo. Eu sofria com isso porque não tinha
me revelado inteira, achava bobagem, isso jamais sairia do telefone para o encontro
pessoal. Para quê ele precisaria saber de meus limites? Soneguei, talvez
por intuição... Não queria perder aquela meio-realidade/meio-fantasia...
Até que um dia...
Madrugada. Acordei assustada com o toque do telefone.
- Querida, acordei você?
- Acordou. O que aconteceu?
- Tomei uma resolução. Estou apaixonado por você e sei que
você também está apaixonada por mim. Saio daqui amanhã
cedo, vou buscar você.
E disparou, como metralhadora, não me dando chance de falar.
- Está resolvido, eu quero você. Não vejo a hora de ter
você aqui, de irmos à praia, ao teatro, você vai conhecer
meus amigos, minha família. Só penso em você, só
falo em você. Estou apaixonado. Espere por mim amanhã. Fique pronta...
- Espere - interrompi. Eu não...
- Não tem não, querida. É da nossa vida que estou falando.
É esse amor enorme, não podemos mais duvidar. Passe um tempo aqui
comigo. Se der certo, nos casamos... e nunca mais nos separamos. Conversaremos
aí, pessoalmente, mas vá aprontando suas coisas...
- Preciso falar - interrompi novamente, espantada e, agora com mais firmeza.
Eu acho que esqueci de lhe contar...
- Me conta amanhã, teremos todo o tempo do mundo...
- Me deixa falar, por favor! É só uma coisa que preciso falar
agora, antes que venha pra cá.
- Desculpe, fala.
- Querido, não posso ir com você. Eu jamais iria à praia,
ao teatro, a festas e passeios com você. Eu não ando...
- Fofa, sem gozação. Estou falando sério. Está tudo
arrumado. Minha mãe está ansiosa por conhecer você.
Gritei:
- Pára de falar! Ouça o que eu digo. Eu não ando, mal me
locomovo. Não vou acompanhar você nunca, a lugar nenhum...
Renato, vacilante:
- Não vai dançar comigo? Não vai comigo à praia...
Não vai... Não vem... (a voz sumindo).
Um gemido agoniado do outro lado. Uma voz soturna dizendo: está bem.
O estalo do fone desligando.
Nunca chegou aqui. Nunca mais telefonou. Até hoje não sei onde
tanto amor foi parar...
Às vezes me pergunto se Renato existiu um dia... Teria sido um sonho?