Não sei por que estou assim... Só durmo. Acordo apenas pra dormir
de novo.
Não vejo motivo para meu sono ser tanto. Acho que estou fugindo. Tenho
medo da minha cabeça. Pavor de perdê-la. Não posso. Ela
é minha glória e minha desgraça. Começo e fim. Vida
e morte. Mas esse mesmo medo já tive tantas vezes e nada aconteceu. Acho
que é mesmo só uma reação psicológica, minha
mente se defendendo dela mesma... Tanta contradição na vida! por
que não uma contradição da minha mente?
Outra hipótese: o frio. Imaginem: um frio danado por aqui, em pleno
verão. Acho que a gente devia parar de dar nomes de estação
às estações. Elas, as estações, não
são mais caracterizadas. Quando pensaríamos numa primavera sem
flor, num verão sem calor, num inverno quente? E o outono? As folhas
não caem mais no outono, caem o ano inteiro. Principalmente as folhas
(ou páginas...) do coração...
Depois que fiquei velha, o frio é o pior tempo. Ele mexe com minha cabeça.
Fico meio tonta, meio abobalhada, não consigo parar de tremer. Não
sei nunca se o frio é no corpo ou na alma. Nem precisa ser frio demais
para começar a confusão. É quando sinto falta de você,
e de você, e de todos os "vocês" que me aqueceram pela
vida bem vivida. Cada um tinha um modo de me aquecer com sucesso absoluto. Um
me aquecia os pés, outro aquecia o corpo todo, outro aquecia só
o que lhe interessava. E eu agora queria ter todos vocês, para aquecer
pra sempre e nunca mais desaquecer.
E o sono. Mergulho no sono. Eu, a famosa insone, a eterna acordada!!!
Desperto com frio. Tomo um agasalho e me envolvo nele. Vem a lembrança
dos braços todos que me envolveram. Ser abraçada é o que
existe de melhor na vida. E a gente nem pensa nisso ao ser abraçada.
Se a gente soubesse dar o verdadeiro valor ao abraço, talvez não
ficasse só, nem sentisse frio e se ajoelharia para agradecer. Corri tanto
atrás de tantos abraços, um aqui, outro ali... Deixei passar a
chance do abraço eterno, o mais terno de todos os abraços. O inesquecível
abraço sem tesão. Aquele que não só envolve e arrebata,
mas dá segurança e me faz sentir amada.
E me bate a saudade do primeiro amor. Aquele brutamontes que roubou meu hímen
e nunca mais o devolveu. E eu fico horas pensando em sair pelo mundo em busca
do meu hímen perdido... (Começar tudo de novo?) Assim como tem
gente que sai à procura do elo perdido. Tem muito a ver: o hímen
é um elo que faz ligação com a vida. Uma vez perdido, a
gente tem que viver, e mergulha no mistério do amor, onde vive às
vezes e muitas vezes morre. O amor compulsão. Tinha que ser com a mulher!
Ouço mulheres dizendo que preferiam ter nascido homens. Ah, tenho pena
delas. Procurando chifre em cabeça de cavalo... Essa é aquela
mulher que não perde seu tempo, como eu, deixando-se assaltar por estranhos
pensamentos, por saudades bandidas, por esperanças descabidas. A mulher
que não se vê com a grandeza e a maravilha de ser, não merece
mesmo ter nascido mulher. Nem homem. Devia ter nascido nada. A única
coisa que eu aceitaria para abrir mão de ter nascido mulher, seria nascer
flor. Desabrochar. Ser polinizada e me multiplicar. Perfumar eternamente! Daria
na mesma. Mulher ou flor, que diferença faz?
A natureza dotou a mulher de privilégios sem conta. Começando
no seu dentro, a sensibilidade, a visão clara do oculto, a capacidade
de sentir e guardar pela vida toda uma simples lembrança, até
mesmo a saudade do seu hímen roubado. E o primeiro sutiã que ninguém
esquece? Afinal, o que significa um sutiã? E o que tem importância,
o sutiã ou o seio que ele abriga, o seio que pulsa ao toque e espalha
o carinho pelo corpo inteiro? E por aí vai, até o privilégio
do orgasmo múltiplo. Alguém já viu um homem com orgasmo
múltiplo? Eu não vi. No máximo três e, assim mesmo,
no vigor da idade. Depois, cai prostrado, maravilhosamente prostrado! (Como
é bom vê-lo adormecido!) Orgasmo múltiplo é mesmo
pra mulher. E não tem conta, parece que não vai acabar nunca.
Só um sono profundo corta e, se for despertada, é bem capaz de
pedir mais. A insaciável. Quem se cansa de amar?
Entre o alfa da sensibilidade e o ômega do orgasmo, as nuanças
sem conta da mulher que parece mistério e é, mas não é...
A mulher amada nunca é mistério, quando amada se abre, se entrega,
se escancara para o amado.
Acorda, homem amado, bebe nessa fonte, mergulha nesse mar de delícias
e vive embriagado desse vinho que não se esgota nunca! Ah, se mais soubesses...
O dom de atingir o inatingível. O homem também tem, só
que nem sempre percebe. O homem perde muito tempo preocupado em ser macho, com
isso deixa passar coisas importantes de sua condição. E está
sempre tentando ser misterioso, enigmático, guardando cartas na manga...
Vem a mulher, olha como quem nada quer, vê tudo, desvenda os mistérios,
penetra o impenetrável, atinge o inatingível... E espanta. Como
a mulher espanta! E como o homem se assusta facilmente! Então, prefere
achar que a mulher é complicada. E continua penetrando o corpo da mulher,
que da alma tem medo, foge, deixa pra lá... E vive satisfeito com a certeza
absurda do dever cumprido...
Não sei porque estou falando tudo isso. Comecei escrevendo uma carta
para um amigo. Extrapolei. Acabei escrevendo para ninguém. Na verdade,
não existe alguém com quem eu queria falar assim, abrir o coração,
escancarar a alma. Existe, sim, mas nem quero pensar. E o "ninguém"
para quem escrevo acaba sendo "todo mundo", um monte de "ninguéns"
que têm nome, alguns gravados para sempre em minh'alma desmedida e inesgotável.
Os que têm nome se reconhecerão aqui.
Preciso voltar à carta para meu amigo...