Conheci Ernani Vidon por acaso, em casa de uma amiga, numa roda animada de professores
universitários. Tão logo cheguei e fui apresentada a ele e esposa,
fui ficando encantada com ele e bebia suas palavras. Logo percebi que era cego.
Nem sei como, pois ele, apesar de novo na cidade, já conhecia cada interlocutor
pela voz. Quando eu disse algo para o grupo e ele me chamou pelo nome, fiquei
intrigada: como? Já sabia quem eu era? Sim, sabia e dava atenção
a mim, embora estranha naquele ninho de intelectuais. Fiquei pouco ali e saí
impressionada. Depois sua senhora me contou que ele se "apaixonara"
por mim à primeira vista... E ela, enciumada, me descreveu para ele diferente
do que eu era, principalmente o detalhe dos cabelos, disse que eram curtos porque
sabia que ele adorava cabelos longos, como eu os tinha à época.
Desmenti tudo ao reencontro, poucos dias depois... rs...
Ernani ficou cego aos 18 anos. Como a cegueira foi anunciada desde os 14, ele
parou tudo para ver o mundo: as cores, as luzes, as pessoas, as maravilhas todas
que nós, videntes, nem percebemos que temos às mãos, pois
esquecemos de dar valor ao poder ver... E como viu, como aproveitou esses 4
anos de visão que ainda lhe restaram. Um dia soube que em meu quintal
eu tinha boninas. Descreveu a flor com riqueza de detalhes e me informou que
ela era citada em poemas de Camões. Chegando em casa fui tentar "ver"
a bonina e me envergonhei. Nunca lhe dera atenção para descrevê-la
em detalhes como ele a descrevera. Aprendeu o braille ainda enxergando, para
que a cegueira não o excluísse do mundo e, principalmente, do
saber. Depois mergulhou na escuridão sem volta. Dedicou-se então
aos estudos com afinco. Estudou no Instituto Benjamin Constant no Rio de Janeiro,
onde depois foi professor até se aposentar. Então veio para Marília-SP
e, concursado, assumiu a Chefia do Departamento de Educação Especial
da UNESP, onde trabalhou até morrer. Tive a sorte de conviver com ele
por muitos anos. Eu o adorava. Quando conversávamos, sentia-o presente
o tempo inteiro, nada o distraía, ouvia-me com toda a atenção
e me enxergava com olhos de luz. Tinha uma sede de saber e de participar de
tudo que acontecia no mundo, mesmo as coisas mais corriqueiras. Assim, lia.
Era como dizia: "vou ler um pouco". E se concentrava ante seu gravador
especial, ouvindo as gravações que lhe chegavam de um instituto
fundado e coordenado por Dorina, uma senhora cega que se dedica ao trabalho
pela melhoria da qualidade de vida dos cegos. Era comum ouvi-lo dizer: "Eu
li na Veja". E sempre falava de uma novidade que eu não conhecia.
Para estudar e ler os livros que não eram traduzidos para o braille,
contratava ledores. Mas era difícil encontrar ledores disponíveis.
Então eu tentava suprir e lia para ele. A última leitura que fiz
foi alguns dias antes de sua morte, justamente a revista Veja. Ele estava sempre
atualizado, interessava-se por tudo. E me ouvia ao rádio todos os sábados.
Foi quando me disse a frase que nunca esquecerei: "você conseguiu
a linguagem universal", visto que eu tinha um público muito heterogêneo,
desde o professor universitário - ele - até empregadas domésticas,
todos me entendendo sem o menor problema. Na verdade, ele constatava isso e
lamentava que ele próprio não conseguira essa universalidade:
intelectual que era, nem todos o entendiam.
Eu o acompanhei até o último momento: estava no Hospital quando
ele começou a morrer. Sua senhora não suportou e saiu do quarto,
pedindo que eu ficasse. Segurei suas mãos com emoção, fui
sentindo que elas esfriavam e ficavam azuladas. Até que o médico
entrou com alguns enfermeiros e o transportaram para a maca que o levaria para
a UTI. Quando a maca saía em direção à porta do
quarto, seu braço direito caiu e eu o recoloquei sobre seu peito.
Eu não percebera: naquele momento ele partira.
Sempre me lembro dele sorrindo e feliz pelo privilégio de ter convivido
com tão maravilhosa criatura. Mas termino esta Crônica chorando.
Saudade de meu inesquecível amigo Ernani Vidon, que sabia me ver sem
precisar da luz dos olhos.