Hoje, mais uma vez, tive um bate-boca comigo mesmo. "E aí, vai
me / nos enrolar, ou farás a tal autocrítica que prometeste?".
"Peraí cara, sabes muito bem que os meus pecados são enormes.
Preciso criar coragem. Ainda mais assim, como queres: uma confissão pública".
Então, trepliquei pra mim: "De hoje não passa. Ou contas
teus podres, ou não escreves mais!" "Tá bom, tá
bom. Não precisa ameaçar. Por onde achas que devo começar?"
"Sei lá, pela primeira coisa que te vier à cabeça".
Quem começou a ler isto, e ainda não me conhece, pensa que é
brincadeira. Juro que é a pura verdade. Pode me achar louco quem quiser,
mas costumo conversar comigo todos os dias. E não é uma conversa
silenciosa, não: é como se eu fosse duas pessoas em pleno diálogo.
Em alto e bom som. Como já contei uma vez aqui, quando estou sozinho,
dirigindo o automóvel, as pessoas param pra olhar. Ontem uma senhora
foi de encontro a um poste, porque passei e ela ficou olhando pra trás
como se não quisesse acreditar. Vi tudo pelo espelho retrovisor.
Bem, vou cumprir agora a promessa que fiz, começando por confessar as
bebedeiras. Minha devoção a Baco começou nos idos de 1958,
quando tinha apenas catorze anos. O primeiro porre ninguém esquece. A
bebida foi cachaça com coca-cola e não houve nada demais que mereça
ser dito. Só estou me referindo a isso porque foi a primeira vez que
pus álcool na boca. E não só na boca, daí ele desceu
para o estômago, entrou para o sangue e subiu pra a cabeça, claro.
Agora, farra grande aconteceu dias depois. Parece mentira. Eu e um companheiro
de copo ingerimos nada menos do que duas garrafas de Vodka. Não conseguimos
chegar em casa pelos nossos próprios pés. Foi o "seu"
Anselmo - um gari da minha aldeia - quem nos conduziu num carrinho de mão.
Daqueles de carregar lixo. Um escândalo. Acho que ainda hoje comentam
por lá.
Doutra feita, digo, doutra farra, fomos parar no cemitério. Nas rodas
que se formavam todas as noites, quando estávamos sóbrios, diziam
que ninguém teria coragem de ir à cidade dos mortos, àquela
hora, e trazer uma cruz. De fato, quando sóbrios, nunca teríamos.
À meia noite daquele dia, porém, eu e outro "sócio
dessa estranha confraria" fomos lá. E trouxemos a tal cruz. Como
quem vai a um baile. Na manhã seguinte, quando acordei e lembrei o que
tinha feito, fiquei com medo até de mim. E passei muito tempo apavorado,
porque todo mundo dizia que a dona da cruz viria reclamá-la. Até
hoje não veio. Talvez porque eu tenha pagado ao "Caceteiro"
- ex-goleiro da seleção da minha aldeia - para ir devolver a cruz
da morta.
Se fosse contar todas as farras, ou pelo menos as homéricas, teria de
escrever uma obra mais vasta do que a "Comedie Humaine". "Mas
tens de contar também aquelas duas...". Estou dizendo para mim agora.
Como sou eu mesmo que estou me dizendo já sei quais são. Ambas
foram na Europa. A primeira, em Paris. Comecei a me preparar para ir ao Lidô
às seis da tarde. O show só seria às dez da noite. Por
"me preparar" entenda-se: entornar meia garrafa de uísque.
Quando cheguei lá, a bebida era champanhe nacional. Nacional lá
da França, claro. E estava incluída na consumação.
Ora, se eu era babaca pra deixar de beber champanhe nacional (francesa), que
já estava paga, pra tomar bebida não paga! Enchi a cara. Que já
estava pela metade de uísque estrangeiro (escocês). Bem, quem não
estava paga - e eu tive de subornar na manhã seguinte - era a chambermaid
do hotel. Para que lavasse o carpete ensopado de vômito e ficasse de boca
trancada. Do contrário ia ser o maior imbróglio diplomático.
Não estou exagerando. Um amigo me falou que eu teria, talvez, de recorrer
à embaixada brasileira para que tudo ficasse na santa paz de Deus.
A outra foi no interior da Noruégua, digo melhor, Noruega. Ah lugarzinho
difícil de se beber! Certa noite em Laerdal, um povoado bucólico
à margem de um fiorde, eu estava a ponto de beber nas calças.
E de entrar em crise aguda de abstinência. Havia apenas um supermercado
aberto. E foi pra lá que me dirigi com o ímpeto de quem se encontra
em plena travessia do Saara, em vias de enlouquecer de sede, e avista um oásis.
Percorri todas as gôndolas. Cada garrafa que pegava parecia conter o líquido
de que tanto necessitava.
Mas era tudo miragem. Nada de cerveja, vinho, nem muito menos conhaque ou uísque.
Implorei aos céus para encontrar pelo menos algo assemelhado ao nosso
"Biotônico Fontoura". Nada. De repente dei de cara com algo
escuro, viscoso, rotulado em norueguês. Contudo, o meu sexto sentido de
bebedor inveterado me gritava que ali estava contido o precioso líquido.
Peguei uma garrafa e acalentei ao colo como se fosse bebê. Como se fosse
beber, não, porque ia mesmo bebê-la: como se fosse um nenê!
Passei pelo caixa apavorado, tremendo de medo que viessem me revistar. E paguei
sem esperar o troco. Corri para o quarto do hotel e atravanquei-o por dentro.
À falta de um saca-rolha, quebrei o gargalo na pia do banheiro e despejei
o conteúdo goela adentro. Só desceu um gole. Tratava-se de um
detergente!
Engraçado! Agora foi que me dei conta disto. No tempo em que eu bebia,
jamais conversei sozinho. Será que isto acontece agora como um efeito
da falta de bebida?