No princípio era o caos; eram as dificuldades, os obstáculos,
os desestímulos, a inveja, a indiferença. "Quem é
este forasteiro que, sem mais nem menos, vai entrando sem bater à porta,
sem suplicar um lugar ao sol, ou melhor, à sombra, sem se humilhar e
ainda por cima ousando almejar que partilhemos com ele o nosso alimento, o nosso
teto, a nossa intimidade, os nossos segredos e até o nosso eventual sucesso
que, por sinal, é uma raridade?"
No princípio eram as trevas; "sinto-me constrangido por ter de enfrentar
sozinho tantos estranhos; invadir terrenos pretensamente privados, comportar-me
como um espião, um voyeur, um intruso; atrever-me a querer retirar dali
o meu quinhão, a participar de um banquete sem nunca ter sido para ele
convidado."
No princípio tudo era hostil: a casa, a inadequação ao
novo nicho, os semelhantes, as conseqüências inevitáveis de
todo começo, a desorganização, a mudança de hábitos
o próprio clima. Tudo.
Daí pra frente, a luta sempre fora renhida e nunca houve trégua,
pelo contrário, tornou-se cada vez mais árdua; a exposição
às intempéries, mais duradoura; as escassas vitórias nunca
foram reconhecidas e a taça de fel dos freqüentes fracassos teria
de ser bebida até a última gota. Jamais tivera descanso; para
onde ia levava consigo as tarefas, as preocupações, as contínuas
solicitações, as reclamações, as queixas; ademais,
a sua disponibilidade teria de ser permanente e infinita. Mas era isso mesmo
o que procurava, então não havia nenhuma razão, nem tempo,
nem ocasião, nem pretexto nem muito menos substrato para pensar em queixumes.
Felizmente, boa parcela daquilo que lhe acontecera no princípio, havia
desaparecido: o caos, as trevas, as hostilidades, estavam aparentemente suprimidos.
O alimento de cada dia teve de ser repartido a gosto ou a contragosto dos demais;
a sua competência sobrepujou a indiferença; a habilidade venceu
as tentativas de humilhações e através da bravura com que
enfrentou as mais árduas batalhas venceu a ferocidade dos inimigos; inimigos
reais ou disfarçados de amigos; desafetos íntimos ou remotos;
adversários tangíveis ou dissimulados. A mocidade superava qualquer
vicissitude.
Mais tarde veio o apogeu: aumentaram as suas reservas de recursos, fez-se forte
e temido. Sua capacidade o transformou num líder incontestável;
quase sempre os companheiros o seguiam confiando cegamente no seu potencial
para alcançar o supremo alvo. Que, para ele, infelizmente, nunca se concretizou.
Com o avançar da idade veio o princípio do declínio irreversível.
Despendeu muita energia, que a cada dia escasseava, em tentativas sempre frustradas
de culminar a sua meta. Os amigos começaram a se afastar e os inimigos
a esboçarem um sorriso de satisfação por trás de
uma máscara, até porque não tinham como expor ostensivamente
qualquer vestígio de alegria. Já não possuía mais
aquela impetuosidade de outrora. Seu trabalho rendia cada vez menos e era com
extrema angústia que se apegava a alguma esperança no afã
e na tentativa inútil de continuar a lutar pelo seu ideal. Até
que certo dia se viu expulso da própria casa. Foi sumariamente expropriado
de todos os seus haveres e não havia mais como manter aquele padrão
de vida que tanto tempo o trouxera conforto, segurança, bem-estar, apesar
das fragorosas batalhas. Sequer foi convidado a sair. Empurraram-no violentamente
para o vazio; para o fim. Ele ainda viveria por um curto período de tempo,
mas logo depois sucumbiria às intempéries; a um meio ambiente
totalmente incompatível com a sua vida. Apesar disso nunca se queixou
e nem poderia, mas ainda que pudesse não teria do que se lamentar, pois
mais cedo ou mais tarde, esta seria a triste sina de cada um dos indivíduos
da sua espécie. Dele, e de todos os outros espermatozóides.