A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Nunca Mais

(Raymundo Silveira)

Se parássemos um pouco a fim de meditar sobre o que está contido nestas duas palavras, nos surpreenderíamos com a variedade de emoções, estados vivenciais, situações provisórias ou definitivas e veríamos que através delas viajaríamos, em poucos instantes, da angústia para a serenidade; do ódio para o perdão; da sonho para a realidade; do sofrimento para o prazer. E vice-versa. Portanto, a expressão "nunca mais" é uma espécie de curinga no jogo da vida. E, neste contexto, aquela carta de baralho nem sempre nos ajuda a ganhá-lo, pelo contrário, na maioria das vezes nos leva a o perdê-lo.

Imaginem o que deve sentir um jovem que há poucos minutos vendia saúde e logo depois fraturou a medula espinhal à altura do pescoço num acidente de automóvel. A sua ilusão poderá até perdurar por muito tempo, mas chegará fatalmente o instante em que ele terá de enfrentar a triste verdade: "nunca mais irei andar". Por outro lado, rememoremos agora os anos de escravidão e nos ponhamos no lugar de um negro que acabou de receber a sua carta de alforria e revivamos o júbilo que teria invadido o nosso espírito ao constatar: "nunca mais deixarei de ser um homem livre".

O "nunca mais" é uma expressão ambígua, pois pode ser surpreendente ou há muito tempo esperada, traiçoeira ou anunciada, amiga ou inimiga, fortuita ou previsível e até mesmo real ou imaginária. E o mais estranho é que ela também pode depender das condições mentais de quem a experimenta. Quantas vezes dizemos ou ouvimos dizer: nunca mais beberei, nunca mais te trairei, nunca mais comprarei a crédito, nunca mais sofrerei por amor, nunca mais quero ver aquela pessoa e muitos outros "nunca mais, nunca mais, nunca mais". Pouco tempo depois, sequer nos lembramos do que dissemos; aqueles "nunca mais" não passaram de palavras ao vento e raramente nos damos conta disso. Estes são os "nunca mais" a que chamo de levianos ou volúveis. Existe também a condição inversa, ou seja, o arrependimento é tão sincero, ou o ressentimento tão profundo que o "nunca mais" é nunca mais mesmo.

Todavia, fúteis ou solenes, provisórios ou definitivos, ilusórios ou reais, estes são os "nunca mais" corriqueiros, banais, com pouca ou nenhuma repercussão histórica, artística, literária, enfim, são "nunca mais" obscuros e evanescentes. Contudo, existem aqueles que ficaram célebres por terem sido pronunciados por poetas e artistas imortais, estadistas famosos, homens e mulheres que disseram para que vieram a este mundo, enfim por pessoas conseqüentes. São estes os casos dos corajosos autores do livro: "Brasil: Nunca Mais - Um relato para a História", com prefácio do Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns. Mas existem muitos outros "nunca mais" perpetuados por escritores imortais. Está-se referindo aqui, por exemplo, ao "nunca mais" de Percy Bysshe Shelley em "A Lament":

"Ó mundo! Ó vida! Ó tempo!
Dos quais subo os últimos degraus,
A estremecer de volta ao incógnito;
Quando retornará a primitiva glória?
Nunca mais - Oh, nunca mais!
Distante, tanto do dia quanto da noite
Todos os prazeres se esvaeceram;
A fresca Primavera, o Verão, a alvura do Inverno,
Enchem de desgosto meu débil coração, e o que era encantamento
Nunca mais - Oh, nunca mais!"

Ou ao "nunca mais" de "O Corvo" de Edgard Alan Poe:

"E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
'Tens o aspecto tosquiado', disse eu, 'mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.'
Disse-me o corvo, 'Nunca mais'."

Há também o "never again" de Shakespeare em "A Megera Domada", o "nunca más" de Cervantes em "Novelas Exemplares", o "niemals" de Thomas Mann em "A Montanha Mágica, o "jamais plus" de Victor Hugo em "Os Trabalhadores do Mar"; ou o "mai piú", de Dante que os condenados vêem escrito na porta principal ao entrarem no "Inferno".

Porém, mais tenebroso do que todos estes é um outro tipo de "nunca mais" porque é Real. Trata-se do "nunca mais" daqueles que atiraram fora a derradeira carta do baralho no último jogo da vida e perderam para sempre, independentemente da quantidade de curingas que possuíam. É aquele "nunca mais" tangível, definitivo, irremissível, sem a menor chance de reversão. É o "nunca mais" dos desesperados.

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