Je le pansai, Dieu le guérit
(Ambroise Paré, 1517-1590)
Pouco tempo depois que fui promovido a credenciado construí a
minha caverna, cumprindo assim o instinto herdado dos Brucutus, meus
ancestrais, cuja prioridade máxima, depois da alimentação,
era a aquisição de um abrigo. Mas aquela caverna, se comparada
às outras onde havia morado antes, equivalia ao antro dos quarenta ladrões
pilhados por Ali Babá em plena armazenagem dos produtos dos seus saques.
Não que contivesse algum tesouro, mas a própria caverna,
em si, já era um tesouro, pelo menos para mim, que jamais havia sequer
entrado em outra igual. Mais tarde adquiri a caverna dos meus pais e,
no ano seguinte, uma quinta na montanha.
Não era rico, mas haviam acabado para mim quaisquer dificuldades de
ordem material, graças à luta sem tréguas dos meus quatro
expedientes corridos, à minha saúde de ferro e capacidade de trabalho.
Nada foi de graça. Cada tostão foi amealhado à custa de
muito sangue, suor e lágrimas derramados, de noites mal dormidas (algumas
não dormidas; nem mal e nem bem), de tolerância aos berros de telefones
alarmando a cada momento, de preocupações e incertezas quanto
ao estado dos doentes sobretudo dos recentemente operados - e do dispêndio
de uma quantidade de energia equivalente à de uma Itaipu Uninacional.
Apenas a título de ilustração: às vezes conseguia
dar uma escapadela para um fim de semana em Fortaleza, mas a cada toque do telefone,
mesmo às altas horas da madrugada, já estava de pé, vestido
e preparado para sair. Tratava-se de um reflexo condicionado muito semelhante
ao da experiência de Pavlov, mas com uma diferença mínima:
o cachorro dele, quando ouvia a campainha, salivava porque ia comer, e o cão
alojado dentro da minha cabeça, ladrava porque tinha de trabalhar.
Confesso a minha susceptibilidade invulgar para com as tragédias humanas
e tenho certeza absoluta que ela é muito mais intensa do que sucede entre
as pessoas a que chamam de normais, mas nunca consegui entender o horror
que estas sentem quando um acontecimento remoto as emociona muito mais do que
aquelas tragédias que estão a ocorrer todos os dias ao seu lado.
Talvez a maioria dos médicos seja também assim como eu. Não
é necessário dizer o quanto lamentamos as vítimas das guerras,
dos atentados terroristas, das catástrofes naturais, das violências
de qualquer natureza, mas nunca nenhuma destas tragédias consegue nos
comover tanto quanto aquelas que acontecem a cada instante ao nosso redor. Por
mais que o tempo passe nunca nos habituamos a elas. Com efeito, a medicina é
uma profissão trágica e só consegue conviver adequadamente
com ela quando se tem uma vocação invulgar para a filantropia.
Nós ajudamos a ajuntar os pedaços de cadáveres esfacelados
num desastre aéreo ou num atentado terrorista; tomamos, literalmente,
banhos de sangue durante as hemorragias maciças (e não o testamos
antes para ver se tem ou não agaivês); tentamos pôr
para dentro das cabeças os miolos estourados; cosemos, serramos, amputamos,
reimplantamos, aperfeiçoamos membros arrancados pelas bombas; abrimos,
vasculhamos, seccionamos, costuramos e arrancamos, tripas e outros bofes contidos
nas barrigas perfuradas a tiros ou a facadas; abrimos peitos dilacerados para
reparar feridas do pulmão e até do coração, enfim
fazemos tudo isto, e muito mais, pessoalmente, ao vivo, em cores, em corpo,
sangue, carne, ossos alma e dignidade. Talvez seja por esta razão que
quando vemos tudo isto na tv, muita gente pensa que nos sentimos como se estivéssemos
a assistir a um filme do xuarzeneger recostados numa poltrona confortável,
tomando uísque e comendo salgadinhos como todo mundo faz.
Se fosse fazer uma listagem dos acontecimentos trágicos que enfrentei
desde que comecei a lidar - como médico - com as misérias humanas,
não tenho dúvidas de que um único deles nunca poderia ser
comparado ao pior atentado terrorista da história, a menos, talvez, se
tivesse sido sua testemunha ocular. Não é por acaso que a maior
incidência de suicídios, alcoolismo e toxicomania ocorre entre
os médicos. Estou convencido de que um dos maiores benefícios
que se poderia dispensar a essa multidão de jovens, plenos de ilusões,
que se candidata, através de uma competição encarniçada,
a uma vaga numa faculdade de medicina, seria levá-los antes a acompanhar,
pelo menos durante um mês, o dia a dia de um Pronto Socorro de uma grande
capital. Iria além disto este estágio deveria ser
um pré-requisito básico, bem mais importante do que a simples
comprovação de que o pretendente a ser doutor concluiu o segundo
grau e muito mais eficaz do que centenas de vestibulares.