A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

O Gourmet De Cadáveres

(Raymundo Silveira)

O homem mais famoso da minha aldeia chamava-se Podóia. Até aí nada demais. O que alarma e justifica ter sido este um nome ainda hoje lendário, pelo menos no Ceará, mesmo depois de passados mais de quarenta anos que ele desapareceu, foi uma circunstância mais do que macabra - Podóia comia defunto. Mas há algo ainda pior, segundo o próprio Podóia, não seria somente ele o comensal daquela "iguaria", mas praticamente, todos os seus conterrâneos. Quando vim morar aqui em Fortaleza, era simplesmente inviável dizer de onde eu vinha, sob pena de passar os maiores vexames. Por este motivo, só declarava a minha naturalidade em circunstâncias absolutamente indispensáveis, como, por exemplo, quando era obrigado a exibir a minha cédula de identidade. Então, até enquanto eu dizia, "vim do interior" tudo bem; nada demais acontecia. Mas se um desmancha prazeres insistisse, "qual interior?" Eu estava ferrado. Ou "lascado", como era a gíria daquele tempo.

Podóia era louco, mas parecia mais lúcido, racional e honesto do que o próprio prefeito municipal, pois pelo menos, nunca fora apanhado cometendo alguma falcatrua. Então, tudo o que ele declarava à polícia e à imprensa era tido como verdade absoluta. Mesmo com toda a sua aparente sanidade, trouxeram-no para a capital debaixo de vara - ou em cima de vara se levarmos em conta que ele veio num "pau de arara". O boato correu à solta. A imprensa não deixou por menos, exigiu e obteve uma entrevista coletiva do preso, depois do seu depoimento às autoridades policiais.

Se o boato tivesse sido o de que os defuntos comiam o Podóia, nada aconteceria, pois ninguém iria crer. Até mesmo se declarassem que o coveiro comia o Podóia, todos iriam acreditar, mas não haveria nenhum alarde. No máximo alguém se riria, porque naquela época este hábito - tão comum hoje em dia - era um escândalo, mas não a ponto de despertar o interesse da imprensa sensacionalista. Mas o Podóia dizia comer defunto mesmo; pela boca, ou seja, mastigando e engolindo. Primeiro saiu nos jornais do estado, provocando uma onda de perplexidade, e de horror em todo o Ceará, mas logo a notícia se difundiu pelos principais órgãos de comunicação do país e até do exterior. O "New York Times" publicou na primeira página.

Neste caso específico, não há como censurar a imprensa sensacionalista. Durante a entrevista, o Podóia forneceu todos os detalhes dos seus "festins diabólicos". A pauta do encontro já era esperada, pois a despeito de se tratar de um louco, ninguém detinha elementos para contestá-lo, porque as suas declarações eram firmes, lúcidas e sem contradições, embora quando ele declarava os principais itens da sua ementa diária, ou melhor, "noitária" - porque segundo ele as suas refeições eram feitas no cemitério e na calada da noite -, todos os presentes se arrepiassem e alguns até vomitassem.

Contudo, aquilo que ocasionou mais furor durante a tal entrevista, foram alguns detalhes tão assustadores quanto absurdos. Segundo o Podóia, ao seu banquete compareceriam convivas que eram pessoas de destaque e por demais conhecidas no lugar e cujos nomes ele desfiava com o desembaraço de uma beata rezando um rosário. Os pormenores dos ágapes eram tão convincentes quanto terríveis, graças, como já foi dito, à segurança, e à falta de contradições do entrevistado. Assim, aqueles, além de fazerem a festa da imprensa sensacionalista, não deixavam a menor sombra de dúvida, perante as autoridades policiais e a opinião pública, quanto à sua veracidade. Sempre de acordo com o Podóia, um dos comensais mais assíduos era o proprietário de uma famosa panificadora - a qual abastecia praticamente toda a população - e que, após se regalar com os "acepipes", fazia da banha dos defuntos a sobremesa e ainda levava o excedente para a sua indústria a fim de com ela manufaturar uma das mais afamadas marcas de biscoitos da cidade que trazia sua grife.

Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente