O homem mais famoso da minha aldeia chamava-se Podóia. Até aí
nada demais. O que alarma e justifica ter sido este um nome ainda hoje lendário,
pelo menos no Ceará, mesmo depois de passados mais de quarenta anos que
ele desapareceu, foi uma circunstância mais do que macabra - Podóia
comia defunto. Mas há algo ainda pior, segundo o próprio Podóia,
não seria somente ele o comensal daquela "iguaria",
mas praticamente, todos os seus conterrâneos. Quando vim morar aqui em
Fortaleza, era simplesmente inviável dizer de onde eu vinha, sob pena
de passar os maiores vexames. Por este motivo, só declarava a minha naturalidade
em circunstâncias absolutamente indispensáveis, como, por exemplo,
quando era obrigado a exibir a minha cédula de identidade. Então,
até enquanto eu dizia, "vim do interior" tudo bem; nada demais
acontecia. Mas se um desmancha prazeres insistisse, "qual interior?"
Eu estava ferrado. Ou "lascado", como era a gíria daquele tempo.
Podóia era louco, mas parecia mais lúcido, racional e honesto
do que o próprio prefeito municipal, pois pelo menos, nunca fora apanhado
cometendo alguma falcatrua. Então, tudo o que ele declarava à
polícia e à imprensa era tido como verdade absoluta. Mesmo com
toda a sua aparente sanidade, trouxeram-no para a capital debaixo de vara -
ou em cima de vara se levarmos em conta que ele veio num "pau de arara".
O boato correu à solta. A imprensa não deixou por menos, exigiu
e obteve uma entrevista coletiva do preso, depois do seu depoimento às
autoridades policiais.
Se o boato tivesse sido o de que os defuntos comiam o Podóia, nada aconteceria,
pois ninguém iria crer. Até mesmo se declarassem que o coveiro
comia o Podóia, todos iriam acreditar, mas não haveria nenhum
alarde. No máximo alguém se riria, porque naquela época
este hábito - tão comum hoje em dia - era um escândalo,
mas não a ponto de despertar o interesse da imprensa sensacionalista.
Mas o Podóia dizia comer defunto mesmo; pela boca, ou seja, mastigando
e engolindo. Primeiro saiu nos jornais do estado, provocando uma onda de perplexidade,
e de horror em todo o Ceará, mas logo a notícia se difundiu pelos
principais órgãos de comunicação do país
e até do exterior. O "New York Times" publicou na primeira
página.
Neste caso específico, não há como censurar a imprensa
sensacionalista. Durante a entrevista, o Podóia forneceu todos os detalhes
dos seus "festins diabólicos". A pauta do encontro já
era esperada, pois a despeito de se tratar de um louco, ninguém detinha
elementos para contestá-lo, porque as suas declarações
eram firmes, lúcidas e sem contradições, embora quando
ele declarava os principais itens da sua ementa diária, ou melhor, "noitária"
- porque segundo ele as suas refeições eram feitas no cemitério
e na calada da noite -, todos os presentes se arrepiassem e alguns até
vomitassem.
Contudo, aquilo que ocasionou mais furor durante a tal entrevista, foram alguns
detalhes tão assustadores quanto absurdos. Segundo o Podóia, ao
seu banquete compareceriam convivas que eram pessoas de destaque e por demais
conhecidas no lugar e cujos nomes ele desfiava com o desembaraço de uma
beata rezando um rosário. Os pormenores dos ágapes eram tão
convincentes quanto terríveis, graças, como já foi dito,
à segurança, e à falta de contradições do
entrevistado. Assim, aqueles, além de fazerem a festa da imprensa sensacionalista,
não deixavam a menor sombra de dúvida, perante as autoridades
policiais e a opinião pública, quanto à sua veracidade.
Sempre de acordo com o Podóia, um dos comensais mais assíduos
era o proprietário de uma famosa panificadora - a qual abastecia praticamente
toda a população - e que, após se regalar com os "acepipes",
fazia da banha dos defuntos a sobremesa e ainda levava o excedente para a sua
indústria a fim de com ela manufaturar uma das mais afamadas marcas de
biscoitos da cidade que trazia sua grife.