A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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O Quéquiá

(Raymundo Silveira)

Há pessoas que parecem ter graduação, mestrado e doutorado em palavras ao vento, mas existem algumas que excedem a todas as expectativas. Outras são monocórdias, nunca fizeram nenhum curso de especialização e, portanto, praticamente só falam uma única expressão sem conteúdo, sendo a mais freqüente delas o quéquiá, uma tentativa idiota de elisão para cumprimentarem os conhecidos indagando destes "o que é que há". Esta corruptela é mais do que uma idiotice, pois resulta da mesmice, da ignorância, da carência de leitura, em suma, da falta de instrução mínima e do desprezo das elites para com os menos favorecidos e que, a princípio, eu imaginava ser um dos resultados indiretos de três séculos e meio de dominação escravocrata, até que escutei o rádio repetir, até encher o saco, uma cantiga que até hoje faz muito sucesso e cujos versos, título, estribilho, coro, tudo são uma espécie de eco daquela monstruosidade sintáxica. Foi naquela ocasião que me dei conta de que a imbecilidade não é apanágio de nenhum estrato social.

Conheci diversos usuários de quéquiás. "Qué qui... Qué qui... Qué qui... Á?". Este era o de um gaguinho meu companheiro de infância e que conservava continuamente três pedrinhas na boca porque lhe haviam dito que Demóstenes teria ficado curado da sua gagueira adotando idêntico procedimento. Mas o quéquiá, por si só já ridículo, somado à gaguez e ao efeito das pedras, produzia um tartamudeado tão grotesco que era impossível conter o riso de qualquer pessoa que o escutasse bodejar. Convivi também com outro adepto de quéquiás quando era estudante de medicina e ele os punha em prática sempre que tentava abordar colegas e professores quando pretendia obter quaisquer benesses assim como empréstimos financeiros ou boas notas escolares. Certa vez abordou, numa boate, um lente de Dermatologia, sujeito esquisitão, metido consigo mesmo, bebedor solitário e cujo semblante jamais esboçou um sorriso. "Quéquiá, professor Sorumbático?" " Não há nada!" Mas ele continuou de pé ao lado do mestre à espera de um convite para se sentar à mesa com ele. "Pode ir-se. Não já disse que não há nada?"

Habitava na minha aldeia outro adepto tão contumaz de quéquiás que passou a ser conhecido por este aleijão lingüístico. "Oi Quéquiá, quéquiá?" "O quéquiá, rapaz, tudo bem?" Num belíssimo dia (toda história que se conta não aconteceu sempre num belo dia?), pois num belíssimo dia estava acontecendo uma reunião a fim de se decidir a participação do time da minha aldeia num campeonato estadual de futebol. A reunião era a portas fechadas, pois os cartolas queriam evitar muitos palpiteiros, os quais, quando se tratava de futebol insistiam em intervir. O presidente da Associação Esportiva fez uma concessão especial ao Quéquiá, mas em compensação ele deveria ficar calado. Contudo, muito nervoso, ele não se conteve: "Não é possível, o quéquiá? O Cabo Dulce tem de ser zagueiro central; o Popó de centro avante é um absurdo; e quem vai ser o ponta direita?" E não parava de falar. Enquanto isso pedia várias vezes pra abrirem a porta, saía, voltava e continuava a dar pitacos. Quando ele pediu pra sair mais uma vez e logo depois retornou, o presidente foi falar com ele na entrada:

"Quequiá não enche o saco,
Pois não te agüento mais;
Enquanto tu davas pitaco,
Eu te aturava, rapaz;
Mas este teu sai e fica
Agora já tá demais
Tu não és couro de pica
Pra tá pra frente e pra trás
."

(07/02/2004)

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