A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Perfume de Mulher

(Raymundo Silveira)

Era apenas minha prima pelo lado materno, mas foi uma espécie de mãe, irmã, amiga, companheira e namorada, embora tivesse cinco anos a mais do que eu. Não possuo nenhuma fotografia dela e nem preciso, pois apesar de ter ido estudar a geologia dos campos santos, como dizia Machado, há quase cinqüenta anos, tenho a sua imagem na retina como se ela estivesse na minha presença neste exato momento. Não ousaria comparar o sorriso da Mona Lisa, de Leonardo, nem o de Helena Fourment, de Rubens, nem tampouco o de alguma das Sete Primaveras de Sandro Filipepi (o Botticelli) com o da minha prima, porque o que ela exibia não era propriamente um sorriso, mas um resplandecente semblante de alegria e os únicos detalhes que este tinha em comum com aqueles das mulheres dos mestres europeus eram a doçura e a perenidade.

Não, ela não tinha nada em comum com uma européia de além Pirineus, mas possuía tudo da nossa avó que, por sua vez, herdou a aparência física da mulher ibérica, consubstanciada numa mistura de raças nômades com acentuados traços mouriscos. Era linda. Seu rosto tinha um gracioso contorno; a tez trigueira corroborava essa origem peninsular. Os cabelos eram negros e sedosos, os olhos escuros possuíam a expressão serena da bondade e da inocência. E aquele sorriso que, como já foi dito antes, era mais do que um sorriso – era a personificação da juventude, adicionada à beleza e à alegria de viver. Com efeito, procuro nos escaninhos da memória um único vestígio de sisudez na face da minha prima e não encontro, portanto jamais seria capaz de retratá-la de mau humor, mesmo que eu possuísse o gênio inventivo de um Holbein, pois a sua alegria e o seu semblante eram tão inseparáveis quanto o azul da Gruta Azul de Capri, no Mar Tirreno.

Foi também através dela que senti pela primeira vez o mais agradável de todos os aromas; era um cheiro natural, autêntico que emanava espontaneamente do seu corpo - um perfume de mulher que nunca mais me abandonaria. É impossível descrever com palavras um odor, mas é perfeitamente possível falar das sensações que este nos desperta. O cheiro da minha prima me causava um misto de arrepios, delírios, frenesi, ternura e por que não dizer, paixão; era como se emanações vaporosas advindas da câmara e do leito de Édipo e de Jocasta penetrassem fundamente na minha memória olfativa; e quando ela partia, ainda ficava pela casa toda aquele estranho e doce olor a perpetuar a sua presença, acarretando então um sentimento de nostalgia que se prolongava por muitos dias e não raramente me fazia chorar.

Os cenários que até hoje mais povoam os meus sonhos são as fabulosas histórias que ela me contava. “Cinderela” – ah, quantas vezes eu pedia para ouvir essa bela fábula até adormecer. “O Pequeno Polegar”; “A Rainha das Abelhas”; “João e Maria”; “O Príncipe das Rãs...”, “A Pequena Sereia” – cuja fotografia tenho agora mesmo na tela deste monitor, encontrando-me ao seu lado e a quem visitei em Copenhague em 1989 -; “O Pequeno Klaus”; “A Caixa de Madeira”; “Os Cisnes Silvestres”; “O Patinho Feio”; “As Roupas Novas do Imperador”. Meu Deus, que retorno emocionante ao passado! Como estão vívidas na minha memória essas “histórias de Trancoso” dos meus sete, oito, nove anos, contadas horas a fio pela minha querida prima, sem demonstrar o menor vestígio de cansaço.

Ainda guardo também com nitidez a lembrança da triste tarde de 28 de Agosto de 1954. Apesar dos meus parcos dez anos desconfiava da fisionomia angustiada da minha tia pelo lado paterno, a agitar com as mãos trêmulas e os olhos úmidos, um telegrama aberto sem pronunciar uma só palavra, como se quisesse me poupar daquela trágica notícia, talvez pelo receio do abalo emocional que me ocasionaria, ou, quem sabe, temerosa de que eu nunca fosse entender toda a extensão daquela tragédia. Foi o primeiro golpe rude que a vida me desferiu! Até hoje sonho acordado com ela todos os dias; parece que estão a acontecer agora mesmo os períodos de férias escolares que ela fazia questão de passar comigo, ora na minha, ora na sua própria cidade. Saudade!

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