A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Seyura en los hierros

(Raymundo Silveira)

"Seyura en los hierros y haza fuerza hacia abajo como si fuera hacer una dilijencia". A pobrezinha mal falava o português, era o primeiro filho e se encontrava naquela posição que foi inventada pelos obstetras franceses, numa tentativa desastrada de tornar mais digna a posição de parir das suas clientes da corte e da nobreza. Isto é, deitada de costas, com as pernas suspensas por dois suportes de ferro.

A parturiente, uma pobrezinha não pagante e cobaia de laboratório de ensino, devia se sentir, além de humilhada, completamente desamparada. Uma vez que se encontrava num ambiente estranho e sem ninguém conhecido por perto. Imagine-se o que ficaria também a imaginar ao ouvir aquele palavreado estranho e sem sentido algum para ela.

Desde quando vi o primeiro parto, um sexto sentido me dizia que ali existia algo muito errado. Com efeito, quando uma mulher necessita cumprir qualquer função fisiológica expulsiva, como fazer cocô ou xixi, a tendência é a de se acocorar. E isto é mais do que óbvio, uma vez que aquela força que atrai todos os corpos na direção do centro da Terra, e que se chama gravidade, estaria sendo seriamente contrariada caso ela resolvesse se deitar.
Isto, no meu tempo de acadêmico de medicina, era impensável. Somente na década de 1980 começaram a surgir os debates acadêmicos acerca da melhor posição para parir. Mas o peruano, também doutorando em medicina, insistia: "Seyura en los hierros y haza fuerza hacia abajo como se fuera hacer una dilijencia". "Doutor, me ajude pelo amor de Deus, eu vou morrer". "No muere. Haza apenas lo que yo disse a usted: Seyura en los hierros y haza fuerza hacia abajo como si fuera hazer una dilijencia".

Ia passando na ocasião, quando ouvi aquele patoá, que nem portunhol parecia, bradado com insistência pelo meu colega peruano. Somente hoje consigo imaginar o grau de sofrimento a que estava submetida aquela infeliz. A princípio pensei em deixar correr frouxo a fim de ver até onde iria aquela ópera bufa. Mas a compaixão que os gritos daquela miserável me despertou, falou mais alto. "Deixa, Quiroga. Deixa que eu mesmo faça este parto". Ele ainda quis recusar: "Silvera y como puedo alguno dia vir a aprender a hacer uno parto si nunca lo praticar?" "Depois tu aprendes, Quiroga. Este sou eu que vou fazer. Ele não gostou. Saiu amuado. Mas consegui levar um pouco de calor humano àquela pobrezinha. , Ainda que tenha sido apenas através de uma fala mais familiar, Mesmo assim, tive de ajudá-la através da aplicação de um fórceps de alívio.

Doutra feita, o mesmo colega peruano estava prestando exame oral e não parecia estar-se saindo muito bem. Aliás, o QI do Quiroga não era dos mais elevados. Não por ser hispânico, é claro. Conheço inúmeros colegas não apenas peruanos, como também bolivianos, uruguaios, argentinos, paraguaios e venezuelanos, que são profissionais da maior competência. O cientista que mais estudou a contratilidade uterina, por exemplo, foi o uruguaio Caldeyro Barcia. Médico de nomeada. Reconhecido no mundo inteiro.

Dotes intelectuais independem do país onde se habita. Os argentinos, com uma população que é cerca de um terço da nossa, abiscoitaram meia dúzia de Nobel. Nós, até agora, nenhum. O coitado do Quiroga, contudo, não era exatamente um representante emérito da capacidade mental do seu povo.

Voltemos ao seu exame oral. O Professor estava ansioso para ajudá-lo porque já era a segunda vez que ele repetia a disciplina de Obstetrícia. "Quiroga, relaxa, tem calma, Tenho certeza que tu sabes o que vou te perguntar. Se responderes, estarás aprovado, pois só pretendo te fazer esta pergunta: O que é uma gravidez?" Quiroga esboçou uma careta, pensou (?), coçou a careca e se saiu com esta: "El embarazo es uno aumento del volume del ventre". "Não, Quiroga. Eu, por exemplo, tenho meu ventre um pouco aumentado e nem por isto estou grávido". "Mas es porque mi mestre no tiene la menstruación".

(25/12/2002)

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