A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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O Demônio Pornográfico

(Raymundo Silveira)

A cada momento cruzávamos esses Fariseus, ressoantes e vazios como tambores, que vêm do Templo assoalhar a sua piedade – uns com as costas vergadas, esmagadas pela vastidão do pecado humano; outros tropeçando e apalpando o ar, d’olhos fechados para não ver as formas impuras das mulheres; alguns mascarados de cinza, gemendo, com as mãos apertadas sobre o estômago – em testemunho dos seus duros jejuns.” (Eça de Queiroz: “A Relíquia”)

Nelson Rodrigues se auto-intitulava de “O Anjo Pornográfico”.Bem, anjo, não sei, mas que ele era pornográfico parece não restar a menor dúvida. Seus trabalhos literários aí estão para comprovar tal afirmação. Mas o que é mesmo pornografia? Vamos ao caçador de borboletas:”1. Tratado acerca da prostituição. 2. Figura(s), fotografia(s), filme(s), espetáculo(s), obra literária ou de arte, etc., relativos a, ou que tratam de coisas ou assuntos obscenos ou licenciosos, capazes de motivar ou explorar o lado sexual do indivíduo. 3. Devassidão, libidinagem. Dizem que quando o repórter David Nasser levou o currículo de um certo candidato a ministro da ditadura militar a fim de ser examinado com vistas a uma eventual nomeação, o futuro ditador teria dito: “Mas será possível que o Feolinha seja tudo isso mesmo?” Idêntica pergunta caberia quanto ao maior dramaturgo brasileiro: Será que o “Anjo Pornográfico” seria mesmo tudo aquilo que o “Aurélio” define?

Bem, pouco importa, mas se isto for verdadeiro, não me resta alternativa se não me declarar a partir deste instante de “O Demônio Pornográfico”, por uma razão muito simples: tudo aquilo que é atribuído ao Nelson, que era um gênio da literatura, pode ser atribuído a mim, pois escrevo também exatamente sobre o que ele escreveu, ou seja, espetáculos, obra literária ou de arte, etc., relativos a, ou que tratam de coisas ou assuntos obscenos ou licenciosos, capazes de motivar ou explorar o lado sexual do indivíduo, sem, contudo, chegar sequer aos seus pés em termos de grandeza literária. Somos, portanto, convergentes nas idéias e completamente divergentes no mérito. Como o oposto de anjo é demônio, não há quem possa querer me tirar este honroso título – o demônio pornográfico.

E já que sou o demônio, pretendo tirar proveito disto explorando comercialmente os meus dotes. Ora, por que só a indústria pornô pode lucrar com a sua pornografia e eu não? Irei, portanto, instalar minhas casas de massagem, meus prostíbulos, meus pornochopingues, meus teatros de sexo explícito ao vivo. Mas atenção! Como um dos piores defeitos do caráter humano é a nojenta hipocrisia, minhas empresas jamais ficarão na clandestinidade. Portanto, todo irmão do santíssimo sacramento, membros da TFP (Turma dos Fodedores Picaretas), promotores de shows beneficentes, puritanos de um modo geral, terão de ser identificados na entrada e obrigatoriamente deverão estar acompanhados das respectivas famílias, para serem devidamente fotografados e publicados no dia seguintes nas colunas sociais onde gostam tanto de aparecer como cidadãos de bem. E se estão pensando que boicotarão os meus empreendimentos, como fazem atualmente, freqüentando clandestinamente a concorrência, assistindo aos seus filmes e saites pornôs trancados nas suas alcovas, comendo putas em locais altamente sigilosos, estão muito enganados. Já contratei uma equipe eficiente de detetives para fotografarem os santarrões quando estiverem tratando acerca da prostituição; colecionando figura(s), fotografia(s), filme(s), espetáculo(s), obra literária ou de arte, etc., relativos a, ou que tratam de coisas ou assuntos obscenos ou licenciosos, capazes de motivar ou explorar o lado sexual do indivíduo e cometendo suas devassidões e libidinagens. Só que nunca aparecerão em colunas sociais, mas nas páginas policiais do Jornal “O Hipócrita” que também pretendo criar.

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