A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Você Já Distraiu Um Dente?

(Raymundo Silveira)

Hoje, logo que acordei, perguntei a uma pessoa onde estaria uma outra e ela me respondeu: "saiu pra distrair um dente". Como a pessoa a quem perguntei repetiu três vezes esta mesma resposta e em virtude de se queixar de que é portadora de um certificado de conclusão de segundo grau expedido por uma Escola Oficial - logo, sob a chancela do Ministério da Educação - de um país que se considera civilizado, não pensei noutra coisa a não ser que a terceira teria ido mesmo distrair um dente e fiquei dando tratos à bola a fim de tentar entender como isto seria possível.

A primeira idéia que me ocorreu foi a de que deveria se tratar de qualquer tipo de dente, mas nunca um daqueles que o "Aurélio" define como "cada uma das peças duras, semelhantes a osso, que guarnecem os maxilares e mandíbula do homem e doutros animais, e servem especialmente para morder e triturar alimentos". Então passei a imaginar outras modalidades de dentes e correlacionar com a idéia de divertimento, recreação, entretenimento. Ocorreram-me, então, os seguintes tipos: cada uma das pontas ou saliências que guarnecem a engrenagem de certos objetos; cume pontiagudo de montanha; segmento, recorte ou divisão pouco profunda que órgãos e partes vegetais apresentam com freqüência. E assim pensei em dente de serrote ou de cremalheira, de serra, de alho e por aí. Terminei chegando à conclusão que nenhum destes era susceptível de se divertir e reconsiderei a primeira hipótese, ou seja, os dentes da boca.

Inicialmente pensei em cinema, teatro, parque de diversões, hipismo, jogos, esportes de um modo geral e cheguei à conclusão de que também não era possível. Depois pensei em namoro e, por associação direta, beijos na boca. Contudo, neste caso específico, a criatura poderia até distrair dois lábios, duas línguas, e, com um pouco de boa vontade, até duas dentaduras. Mas a informante falou bem claro: "foi distrair um dente", portanto, a menos que um dos dois parceiros fosse completamente banguela e o outro portador de alguma anomalia congênita ou já houvesse extraído os outros trinta e um, o que era pouco provável, não conferia com o meu raciocínio. Jamais iria entender como pode alguém submeter um dente a qualquer destes entretenimentos. Ainda cheguei a cogitar de que, alegoricamente, até seria tolerável que a pessoa tivesse ido a um circo, por exemplo, e abrisse a boca a fim de que as suas arcadas dentárias assistissem ao espetáculo. Mas recordei mais uma vez que a criatura falou muito claramente "foi distrair um dente", logo não era provável que ela divertisse apenas um e deixasse os demais a ver navios, digo melhor, soalho e céu da boca.

Somente depois de muito pensar acrescentei à primeira indagação: "onde foi mesmo que ela foi 'distrair' este dente?" "Ora, dotô, só pode ter sido no dentista". Só então passei a entender que a terceira tinha ido se submeter a uma extração dentária. Confesso que, naquela ocasião, senti muito remorso por ter falado mal do meu Ateneu, aqui mesmo nesta Internet.

Às vezes amargo este arrependimento até mesmo sem motivação alguma e chego a ter vontade de destruir tudo aquilo que escrevi. Com efeito, quando cheguei lá, tinha apenas doze anos incompletos, mal era capaz de executar as quatro operações fundamentais, sabia que Pedro Álvares Cabral havia descoberto o Brasil, mas ignorava em que local ele teria precisamente aportado pela primeira vez; que Duarte Coelho Pereira fora o donatário da Capitania de Pernambuco e que a Terra era redonda porque sua sombra curva se projetava sobre a Lua durante um eclipse. Pois bem, apenas três anos mais tarde (na segunda série daquilo a que se chamava Curso Ginasial), já havia lido mais da metade dos "Sermões" do Padre Antônio Vieira, tinha de cor inúmeros versos de "Os Lusíadas", lia Cícero e Virgílio no original, conhecia, virtualmente, todo o esplendor da Grécia e da Roma antigas, graças ao privilégio de ter tido acesso a uma das maiores bibliotecas do país e ao incentivo que me deram lá a fim de freqüentá-la.

Quando estive, fisicamente, pela primeira vez em Roma, em Setembro de 1980, eu já conhecia virtualmente - há mais de vinte anos -, a Igreja de São Pedro, a Capela Sistina, o Museu do Vaticano, a Basílica de Santa Maria Maior, o Arco de Constantino, o Pantheon a Coluna de Trajano na Praça de Espanha, a Via Apia, e muitos outros monumentos e pontos de atração cultural, além de algumas Catacumbas. Conhecia praticamente também todo o Monte Palatino, incluindo a Chiesa di San Pietro in Vincoli, o Colosseum, o Circus Maximus, as ruínas do Fórum Romano. E mais: tenho razões para crer que se não tivesse posto os pés na Cidade Eterna eu saberia muito mais a respeito dela do que alguns turistas que viajam para lá quase todos os anos.

Tenho também um diário de viagem à Grécia, à Turquia e ao Egito, escrito enquanto percorria aqueles países, tendo como única fonte de consultas nada mais do que um mapa rodoviário e as células cinzentas do meu biocomputador cerebral, cuja programação já havia sido feita previamente através do estudo da História e da Geografia daqueles países, principalmente durante os meus três parcos anos de internato no meu Ateneu de cuja rigorosa disciplina tanto já falei horrores.

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