A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Os Efeitos Paradoxais Do Espinafre

(Raymundo Silveira)

Mesmo quando o conheci, quando era criança, eu já sabia que o marinheiro Popeye era uma imagem de ficção. Ainda assim eu lia as suas divertidíssimas histórias, pois as achava muito engraçadas.. Sabia que era uma figura imaginária, porém havia alguns detalhes a ela associados nos quais cheguei a acreditar e até hoje ainda acredito. Foi o que sucedeu acerca dos supostos poderes que ele adquiriria ao comer espinafre. Como eu tinha muita vontade de possuir superpoderes, embora detestasse espinafre, comia-o como quem come pipoca no cinema, ciente de que me tornaria pelo menos mais inteligente. Mas, infelizmente, se deu exatamente o oposto: o efeito do espinafre me fez ficar cada vez mais burro. Ainda hoje credito esta minha debilidade mental ao efeito residual de tanto espinafre que ingeri quando era criança.

Recordo de vários episódios que confirmam esta minha suposição. Um dos mais constrangedores sucedeu quando fui prestar exame de admissão ao ginásio - sim, naquele tempo havia isto - e levava uma carta de recomendação de um político influente. O professor disse: "OK, vou te aprovar porque devo muitos favores a este senhor, mas me responde pelo menos a uma pergunta: "Na Baía, viveu no princípio deste século um cidadão baixinho, da cabeça grande e muito inteligente. Tanto que foi representar o Brasil em Haia, na Holanda, e se saiu tão brilhantemente que ficou conhecido como o 'Águia de Haia'. Pois bem, me diz só o nome dele e estarás aprovado!" Eu sabia lá quem era Águia de Haia. Se visse escrito juro que pronunciaria AGÚIA de Haia. Vi que estava mesmo ferrado e disse logo: "Sei não, professor!" "Não é possível, meu Deus, Rui Barbosa!" E me mandei pra fora da classe "Ei, rapaz para onde tu vais? Não queres mais outra chance?" "Que chance, meste, o senhor num já tá chamando outro candidato?" Pois é, me envergonho demais desta história, mas mesmo assim me atrevo a contá-la porque sei que tudo se devia ao efeito do espinafre.

O professor de História me aprovou assim mesmo, pois devia muitos favores ao meu padrinho político. Como vêem a coisa vem de muito tempo. Com o professor de História Natural (morro também de vergonha de contar) deu-se algo ainda pior. Mostrei o cartão do deputado, ele leu e disse: "Tudo bem, pode se considerar aprovado. Mas pelo menos, para que eu possa ter um pouco de paz na consciência quando estiver deitado, me responde só a esta pergunta: a que família pertencem as borboletas?". Eu sabia lá a que diabo de família pertencia porra de borboleta. Mas já tinha escutado falarem assim muito vagamente que as famílias, na taxonomia zoológica, terminavam sempre pelo sufixo ácea. Então, não tive dúvidas, quando o professor repetiu a pergunta eu tasquei: "às borboletáceas, querido mestre". Ele coçou a careca, me encarou firme e falou: "Amigo, mesmo com um peso enorme na consciência, vou te aprovar; vou te aprovar porque devo muitos favores ao Justino. Portanto, nunca esquece que só passaste para o curso ginasial por causa dele; mas fica tu sabendo de uma coisa: borboletácea é a puta qui pariu, viu? A puta qui pariu".

Aquele espinafre... O que ele não fez comigo! Irei citar apenas algumas frases que escrevi em provas de redação para verem como a erva é burrificante mesmo. "Precisamos tirar as fendas dos olhos para enxergar com clareza o número de famigerados que aumenta". "O bem star dos abtantes endependente de roça, religião, sexo e vegetarianos, está preocudan-do-nos". "Os analfabetos nunca tiveram chance de voltar à escola". "É preciso melhorar as indiferenças sociais e promover o saneamento de muitas pessoas". Sei não, mas penso que se eu não tivesse comido o maldito espinafre, talvez - mesmo escrevendo em caçanje - eu me preocupasse mais um pouco com as DIFERENÇAS sociais. Parece que a insensibilidade para com elas é mais um efeito colateral do maldito.

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