A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Por Que Me Considero Também Português

(Raymundo Silveira)

Como muitos paradoxos que têm acontecido comigo ao longo da minha hospedagem neste planeta, certos aspectos de natureza parentais e genealógicos, estão longe de constituírem exceções. Verbi gratia (ainda se usa isto meu Deus? E de onde eu fui tirar?), mas já que está aqui,verbi gratia, dos descendentes dos meus bisavós paternos conheci e ainda conheço uma multidão, mas ignoro tudo a respeito dos seus ancestrais; não sei sequer quem foram os seus pais. Por outro lado, dos descendentes dos meus bisavós maternos, só conheci minha mãe, uma irmã dela, a viúva e os filhos do filho mais velho do meu avô e meia dúzia de tios avós. Entretanto, sei muitas coisas sobre os seus ascendentes até mais ou menos a sétima geração, como os seus nomes completos, onde nasceram, onde foram batizados, com quem casaram, quantos filhos tiveram, os nomes destes, onde moraram e muitos outros pormenores. É ou não é um paradoxo?

Irei poupar os leitores daquela chatice que é citar os caules, os galhos os ramos e a folhagem da minha árvore genealógica porque, até mesmo aquele capitulo do Gênesis, cujo número não tenho de cor, estou com preguiça de ir procurar e que diz que não sei quem gerou Isaac, Isaac gerou Jacó, Jacó gerou Jericó e tome uma página e meia que ninguém agüenta ler nem escutar, mesmo sabendo se tratar dos troncos do nosso Salvador. Por que então iriam querer saber os nomes dos defuntos que geraram este escrevinhador atrevido? Gostaria apenas de abordar a origem e alguns pormenores de apenas um deles, que é exatamente o primeiro, pelo menos para mim, pois foi somente até ele aonde pude chegar. Chamava-se Manoel Ferreira Fonteles e pode ser considerado o Adão do qual descendem praticamente todos os habitantes da região cearense onde nasci.

Manoel Ferreira Fonteles (não, que Joaquim? Não tem nada a ver com Joaquim), Manoel Ferreira Fonteles nasceu no dia sete de Março de 1687, num lugarejo chamado Fontelo (daí certamente se origina o seu sobrenome), da freguesia de Meixomil que, por sua vez, faz parte do concelho de Paços de Ferreira, localizado numa região de Portugal, situada entre o Douro e o Minho. Deve ter assistido, portanto, à coroação de Dom João V, o Magnânimo, (1706 – 1750), ou pelo menos tê-lo avistado de longe, pois foram coevos. Sei de tudo isto, e muito mais, graças aos estudos, in loco, realizados pelo meu primo Padre Sadoc de Araújo que dedicou (e ainda dedica) a este estudo parte substancial do seu tempo, tendo, inclusive, viajado várias vezes a Portugal somente com esta finalidade. Por este motivo, os dados obtidos pelo meu primo são originais e documentais, portanto fidedignos, pois não foram copiados de livro de seu ninguém.

Agora gostaria de exercitar a minha veia ficcionista e imaginar um pouco o meu heptavô na sua faina diária e também na aventura que foi a sua mudança para o Brasil em princípios do século XVIII. Como seria ele, hem? Certamente nunca foi um membro da nobreza portuguesa como tanto gostam de se fabular alguns habitantes da minha região, quase todos seus descendentes. Os brasões nobiliárquicos portugueses tiveram origem durante os séculos XII, XIII e XIV, portanto quatro séculos antes da chegada dos primeiros povoadores da região onde nascemos. Se alguma nobreza existisse teria se diluído durante estes quatrocentos anos e daquele sangue azul não poderíamos ter herdado mais do que uma gota, se tanto. Assim sendo, imagino o meu avoengo a pescar o bacalhau e outros peixes, os crustáceos, os moluscos e outros bichos da água salgada e da água doce, no Oceano Atlântico ou nos Rios Douro e Minho. Se for verdade que existe um gene que transmite a vontade de cultivar o deus Baco, ele deveria também beber muitos copos de vinho verde ou boas talagadas de grapa, uma cachaça deliciosa extraída da uva, com tira-gosto de sardinhas assadas na brasa, pois quase todos nós, seus descendentes somos chegados a reverenciar o monarca dos líquidos.

Por outro lado, às vezes imagino o Manoel Ferreira Fonteles também a arar, a terra plantando, cultivando, podando, irrigando (não, irrigando, não; ele não teria vindo dar com os costados aqui no Nordeste do Brasil, pois duvido muito que tivesse saído de tão longe se soubesse da sequidão desta terra, a menos que tenha sido degredado), mas colhendo o fruto do seu suor. Por um terceiro lado, quem sabe, poderia se tratar de homem instruído e ter presenciado – talvez até participado - do Renascimento na Península Ibérica, precocemente tolhido pela Contra-Reforma, o que facilitou a implantação de uma atmosfera barroca. Devia também cultivar a leitura – mais uma herança transmitida aos seus netos remotos – embora quase toda a produção literária da época fosse proveniente do clero, mormente dos Jesuítas. Deve também ter assistido, ou mesmo participado, da ascensão da burguesia e de sua incipiente literatura laica, em grande parte influenciada pelos cristãos novos. Talvez meu avô fosse até, quem sabe, um destes e tenha migrado para cá devido às perseguições inquisitoriais.

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