A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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O Carteiro Estrepado

(Raymundo Silveira)

Ao contrário de outros memorialistas, prefiro evitar a ordem cronológica, pois como já contei, houve comigo uma época de muita penúria e outra de pouca luxúria, isto é, tive algum tempo de vacas magras e outro, felizmente mais duradouro, de vacas mais gordinhas. Então, nas minhas escrevinhações, prefiro entremear as duas fases para não parecer que estou me fazendo de coitadinho ou, por outro lado, tratando de me vangloriar. Esta história é do tempo das magérrimas e feias, convindo sempre lembrar que as minhas, ao contrário das do sonho do Faraó interpretado por José, vieram antes das belas e gordas. Estava eu quase posto em sossego, pois já tinha dado conta do meu cooper diário e compulsório de seis horas, entregado todos os telegramas e me encontrava a apenas uns duzentos metros da Casa do Estudante, minha primeira residência nesta Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção - graças a um favor que jamais deixarei de agradecer ao meu conterrâneo, vereador Raimundo Linhares -, quando aconteceu.

Aconteceu o quê? Antes devo fazer um breve intróito, do contrário pouca gente vai entender o tal acontecimento. O Departamento dos Correios e Telégrafos, a repartição onde eu trabalhava - mas só entrava lá para bater o ponto e receber as pilhas de telegramas -, costumava fornecer gratuitamente uns calçados que atendiam pela graça de borzeguins. Pelo nome e por se tratar de laranja madura na beira da estrada, como diria mestre Ataulfo Alves, já se pode entrever o que virá. Numa madrugada de Domingo de 1964 estive estudando com outro colega, pois me preparava para fazer o vestibular. O molho de telegramas que recebi às sete da manhã teve de ser acondicionado numa sacola porque não cabia nas minhas mãos. Das sete horas ao meio dia, sol inclemente. A partir daí, chuva em torrente.

Ainda havia metade do "entulho" por entregar quando um automóvel me salpicou todo de lama. Como a desgraça nunca anda sozinha, neste mesmo instante se descolou o solado de um dos tais borzeguins. O que vocês fariam? Pois foi isto mesmo o que fiz, ou melhor, planejei fazer: amputar o trambolho que fazia lepo, lepo, lepo enquanto eu tentava caminhar. Sentei na beirada da calçada da casa de uma destinatária. "Minha senhora, por favor, me empreste uma tesoura!" A sacana se riu muito e respondeu. "Não tenho tesoura, um facão não resolveria?" "Claro. Traga-o! Ignoro para que ela queria aquilo. A lâmina era mais cega do que o Jorge Luis Borges sem o desempenho deste. Amolei aquela lança medieval num fio de pedra e depois de muita luta consegui arrancar fora a sola do borzeguim. Terminei o meu trabalho lá pelas cinco da tarde. Com o pé esquerdo meio calçado e o direito descalço.

Como no dia seguinte tinha de trabalhar novamente e só possuía aqueles borzeguins e um par de "sapatos" de tecido com um solado de película de borracha gasta pelo tempo e pelas minhas passadas, foi com ele que fui trabalhar. Como viram, já aconteceu muita coisa até agora, mas ainda nada do que sucedeu naquele dia. Reiterando: estava quase chegando ao meu tugúrio e caminhava defronte a uma quitanda cuja calçada estava recoberta de folhas secas de bananeira. Já ouviram falar nas armadilhas que os vietcongs preparavam para os americanos na Guerra do Vietnam? Tratava-se de uma superfície plana do solo, recoberta de mato, sem nenhuma aparência estranha, mas por baixo havia uma espécie de trincheira camuflada apinhada de lanças de bambu com as pontas mais afiadas do que agulhas, voltadas pra cima. Quando pisava ali, o soldado invasor caía dentro do buraco e imediatamente era traspassado pelas lanças. Guardadas as devidas proporções - até porque eu também estava em guerra, mas não havia invadido nenhum país -, uma lança de bambu, digo melhor, um prego caibral encontrava-se, devidamente para ele e indevidamente para mim, enfiado, com a ponta pra cima, numa tábua recoberta pelas folhas de bananeira.

Foi a minha "armadilha vietnamita". A princípio só senti uma fisgada na sola do pé, mas quando o soergui a tábua o acompanhou. O prego havia transfixado a planta e emergiu no peito do meu pé. Só então me dei conta da gravidade do acidente. Se alguém assistiu, fez de conta que não viu, porque não fui socorrido, nem vi alguém a sorrir, pois além de trágica a minha situação era também um pouco cômica (quer dizer, cômica pra quem não era o proprietário do pé). A p.... da tábua só desgrudou depois que eu me sentei na calçada e a puxei com toda a força. Ainda bem que não precisou de tesoura, nem muito menos de facão. Cego ou amolado.

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