Ao contrário de outros memorialistas, prefiro evitar a ordem cronológica,
pois como já contei, houve comigo uma época de muita penúria
e outra de pouca luxúria, isto é, tive algum
tempo de vacas magras e outro, felizmente mais duradouro, de vacas mais gordinhas.
Então, nas minhas escrevinhações, prefiro entremear as
duas fases para não parecer que estou me fazendo de coitadinho ou, por
outro lado, tratando de me vangloriar. Esta história é do tempo
das magérrimas e feias, convindo sempre lembrar que as minhas, ao contrário
das do sonho do Faraó interpretado por José, vieram antes das
belas e gordas. Estava eu quase posto em sossego, pois já tinha dado
conta do meu cooper diário e compulsório de
seis horas, entregado todos os telegramas e me encontrava a apenas uns duzentos
metros da Casa do Estudante, minha primeira residência nesta Fortaleza
de Nossa Senhora da Assunção - graças a um favor que jamais
deixarei de agradecer ao meu conterrâneo, vereador Raimundo Linhares -,
quando aconteceu.
Aconteceu o quê? Antes devo fazer um breve intróito, do contrário
pouca gente vai entender o tal acontecimento. O Departamento dos Correios e
Telégrafos, a repartição onde eu trabalhava - mas só
entrava lá para bater o ponto e receber as pilhas de telegramas -, costumava
fornecer gratuitamente uns calçados que atendiam pela graça de
borzeguins. Pelo nome e por se tratar de laranja madura na beira da
estrada, como diria mestre Ataulfo Alves, já se pode entrever
o que virá. Numa madrugada de Domingo de 1964 estive estudando com outro
colega, pois me preparava para fazer o vestibular. O molho de telegramas que
recebi às sete da manhã teve de ser acondicionado numa sacola
porque não cabia nas minhas mãos. Das sete horas ao meio dia,
sol inclemente. A partir daí, chuva em torrente.
Ainda havia metade do "entulho" por entregar quando um automóvel
me salpicou todo de lama. Como a desgraça nunca anda sozinha, neste mesmo
instante se descolou o solado de um dos tais borzeguins. O que vocês fariam?
Pois foi isto mesmo o que fiz, ou melhor, planejei fazer: amputar o trambolho
que fazia lepo, lepo, lepo enquanto eu tentava caminhar.
Sentei na beirada da calçada da casa de uma destinatária. "Minha
senhora, por favor, me empreste uma tesoura!" A sacana se riu muito e respondeu.
"Não tenho tesoura, um facão não resolveria?"
"Claro. Traga-o! Ignoro para que ela queria aquilo. A lâmina era
mais cega do que o Jorge Luis Borges sem o desempenho deste. Amolei aquela lança
medieval num fio de pedra e depois de muita luta consegui arrancar fora a sola
do borzeguim. Terminei o meu trabalho lá pelas cinco da tarde. Com o
pé esquerdo meio calçado e o direito descalço.
Como no dia seguinte tinha de trabalhar novamente e só possuía
aqueles borzeguins e um par de "sapatos" de tecido com um solado de
película de borracha gasta pelo tempo e pelas minhas passadas, foi com
ele que fui trabalhar. Como viram, já aconteceu muita coisa até
agora, mas ainda nada do que sucedeu naquele dia. Reiterando: estava quase chegando
ao meu tugúrio e caminhava defronte a uma quitanda cuja calçada
estava recoberta de folhas secas de bananeira. Já ouviram falar nas armadilhas
que os vietcongs preparavam para os americanos na Guerra
do Vietnam? Tratava-se de uma superfície plana do solo, recoberta de
mato, sem nenhuma aparência estranha, mas por baixo havia uma espécie
de trincheira camuflada apinhada de lanças de bambu com as pontas mais
afiadas do que agulhas, voltadas pra cima. Quando pisava ali, o soldado invasor
caía dentro do buraco e imediatamente era traspassado pelas lanças.
Guardadas as devidas proporções - até porque eu também
estava em guerra, mas não havia invadido nenhum país -, uma lança
de bambu, digo melhor, um prego caibral encontrava-se, devidamente para ele
e indevidamente para mim, enfiado, com a ponta pra cima, numa tábua recoberta
pelas folhas de bananeira.
Foi a minha "armadilha vietnamita". A princípio
só senti uma fisgada na sola do pé, mas quando o soergui a tábua
o acompanhou. O prego havia transfixado a planta e emergiu no peito do meu pé.
Só então me dei conta da gravidade do acidente. Se alguém
assistiu, fez de conta que não viu, porque não fui socorrido,
nem vi alguém a sorrir, pois além de trágica a minha situação
era também um pouco cômica (quer dizer, cômica pra quem não
era o proprietário do pé). A p.... da tábua só desgrudou
depois que eu me sentei na calçada e a puxei com toda a força.
Ainda bem que não precisou de tesoura, nem muito menos de facão.
Cego ou amolado.