A Garganta da Serpente
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Os Pensamentos e As Palavras

(Raymundo Silveira)

"Seja, porém, o vosso falar: Sim, sim; não, não; pois o que passa daí, vem do Maligno."

(Mateus, 5, 37)

Se refletíssemos um pouco sobre as inter-relações entre pensamentos e palavras, ficaríamos perplexos. A maioria das pessoas propende a acreditar que são irmãos gêmeos. Nada mais falso. "Vida nojosa, desenxabida, sem sal. Que arremeda a merda. Que cheira mal". Diz um poeta primitivo ansioso por viver. Do mesmo modo, existem os que cantam hinos de louvor à vida, estando prestes a cometer suicídio.

Diz-se que o livre pensamento e a sua divulgação através da palavra são Direitos Humanos dentre os mais legítimos. Por outro lado, pensamentos que não expressamos através de palavras são, talvez, a maior garantia de privacidade. Um dos "pecados por omissão" que mais nos tornam senhores de nós mesmos.

Às vezes, a disparidade é de outra natureza. E pode gerar impasses. É quando, apesar de anelarmos por expressar um pensamento, as palavras se recusam a obedecer. Para quem escreve esse texto, trata-se de um dos mais angustiantes conflitos. Talvez, a fronteira que separa um escritor de um não escritor. Um poeta de um não poeta.

Outra conseqüência drástica de uma eventual incompatibilidade entre pensamentos e palavras é quando falamos à toa. Sem pensar antes. Apesar de a maioria dos provérbios populares conterem bastante sabedoria, existem vários que são absurdos. Um deles reza que "a boca sempre fala do que o coração sente". Para quem duvidar que isto é um absurdo, recomendo a leitura do soneto "Mal Secreto". De Raimundo Correia.

Mas o pior estigma decorrente dessa dicotomia sucede quando pensamos uma coisa e, deliberadamente, falamos o oposto. Não é intenção desse texto analisar as causas, senão, apontar para alguns resultados. As mais graves imperfeições do caráter subsistem à sua custa. Constituem, a meu ver, o "Triângulo das Bermudas" da indignidade humana e deveriam nos envergonhar de ser gente. São elas: a traição, a falsidade e a hipocrisia.

A primeira nem vale a pena abordar. Trata-se do ato mais torpe que uma pessoa pode infligir a outra. Mais grave, até, do que o homicídio. Convém destacar que é um vocábulo usado e abusado. Alguns o confundem, por exemplo, com infidelidade. Confundir infidelidade com traição é um meio perigosíssimo de tornar irrelevante a ação mais abjeta que um indivíduo pode praticar. Os próprios dicionários são cúmplices deste crime.

Traição existe quando uma pessoa é de plena estima de outra e usa isto para obter informações confidenciais a fim de lhe fazer o mal. Sem que esta suspeite de nada. Porque deposita na primeira a mais absoluta confiança.

A falsidade, filha bastarda da traição, procura imitá-la. Mas nem sempre consegue. Os seus efeitos, conquanto abomináveis, mal se aproximam dos da mãe. Em outras palavras: em toda traição há falsidade. Porém a recíproca não é, necessariamente, verdadeira.

A hipocrisia, filha da falsidade e neta da traição, acontece quando as palavras usadas pelo hipócrita são o contrário daquilo que ele pensa. Infelizmente, todos nós somos hipócritas. Em maior ou menor grau. Quando dizemos, por exemplo, "não sou vaidoso", estamos quase sempre sendo hipócritas. Todo mundo é vaidoso. A vaidade é como a esperança: uma das razões de ser da existência. Só que é muito confundida com orgulho. Vaidade não é orgulho. Quando desejo obter o reconhecimento dos meus pares, estou sendo vaidoso. Nunca orgulhoso. Orgulho passa a existir quando me acho superior a eles. Não interessando julgar se sou ou não.

Uma hipocrisiazinha, portanto, pode ser bem tolerada. Desde que não traga prejuízo ao bem comum ou ao bem-estar de outrem. Mas quando se torna doentia é, não apenas ridícula, como também detestável. São os tais sepulcros caiados do Evangelho.

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