Este parece que foi ontem é mais um clichê
daqueles antipaticíssimos que detesto, renego, abomino, mas em certas
ocasiões não há como escapar dele: parece que foi ontem.
Aliás, parece que foi ontem, não, parece que foi hoje. Estou falando
da madrugada de 09 de Setembro de 1973. Foi uma noite de ansiedades, de sustos,
de perplexidades, de angústias, de medo, de alegria, de expectativas,
de esperanças, de fé, em síntese, certamente foi a noite
em que experimentei, no espaço de meia dúzia de horas, todas as
emoções que já tive até hoje. Afinal, lá
pelas quatro da manhã, nasceu a Lia. Dos vinte e um mil seiscentos e
vinte e dois dias em que habito neste planeta, aquele foi o mais feliz da minha
vida.
Neste intervalo de tempo que separa o dia de hoje daquela data, também
senti as mesmas emoções; mais diluídas do que as daquela
noite, mas, com certeza, as mesmas emoções. Durante este período
houve inúmeros momentos de alegria e alguns de tristezas também;
além disto nasceram as suas duas irmãs e o filho dela meu
neto; houve muitas festas de aniversário, maravilhosos Natais, Páscoas
memoráveis, quando ela cantava com a sua voz infantil desafinada, semitonante,
mal balbuciando as palavras, a cantiga do coelhinho; enfim, se fosse escrever
tudo o que recordo talvez jamais terminasse, menos por carência de espaço
/ tempo do que pelo meu baixo limiar de tolerância às emoções.
Infelizmente, quis o destino que a minha filha passasse por amargas experiências
mal lhe chegou a puberdade. Evidentemente sofremos muito ela muito mais
do que eu, sem a menor dúvida. Tinha, portanto, tudo para ser uma pessoa
fracassada. Minha filha sofreu violências físicas e emocionais,
humilhações de todas as espécies; deu à luz e educou
seu filho, passou por privações materiais prementes e pelas piores
de todas as privações: as do amor e as do carinho. Conheço
a dramaturgia shakespeareana, todas os romances de Fedor Dostoiewski, boa parte
da Comedie Humaine, em suma, de cada autor clássico da literatura universal
conheço pelo menos um livro famoso, mas nunca vi nada que se comparasse
ao que sofreu a minha filha, guardadas as devidas proporções dos
seus treze para catorze aninhos de vida e a sua condição de mulher.
Apesar de tudo isto ela nunca desistiu de lutar. Sozinha, distante dos pais,
sem nenhuma motivação para ter ilusões, mas lutando sem
parar. Concluiu, a duras penas o curso secundário e depois o superior.
Fez-se Mestra durante três duros anos e defendeu, ao final do curso
a sua tese: Sociopoetizando o Hospital Dia - ato ao qual
tive a felicidade de estar presente -, arrancando lágrimas e notas máximas
de toda a banca examinadora. Mais tarde fez-se também Doutora, desta
vez com a tese Do Corpo Sentido Aos Sentidos do Corpo, tendo
obtido idêntico sucesso. Submeteu-se a Concurso Público para Professora
Universitária numa rigorosíssima disputa onde existia apenas uma
vaga e a maioria dos concorrentes já integrava o corpo docente da instituição
estando ali, portanto, mais para homologar a sua situação perante
a lei, do que propriamente para competir. Mesmo assim ela ficou na segunda colocação.
Ontem, pouco mais de um ano depois, tendo surgido mais uma única vaga,
ela foi nomeada Professora Doutora da Universidade Estadual do Ceará.
E ainda há quem diga que a vida imita a arte.
(09/03/2004)