A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Cagoma ou Cacarne?

(Raymundo Silveira)

Chamava-se Insosso, mas levava uma vida salgada. Insosso, chegou esta carta pra ti, lê alto queu quero saber também o quié... Doze de outubro de 1912, espero que esta lhe encontre passando bem, bem como todos os seus, seu Insosso, precisava lhe escrever há muito tempo e não tinha tempo, só estou escrevendo para o senhor me dar aquela receita que o senhor inventou e eu perdi. Quando me ensinou a fazer bolo, me perguntava se eu queria cagoma ou cacarne, e eu sempre quis cagoma, porque cacarne só saía bola, nuncabolo, jácagoma, os bolos ficavam deliciosos. De qualquer jeito, se o senhor num souber mais fazer cagoma, pode mandar cacarne, porque moro perto duma cozinheira e ela já disse que qualquer bolo cacarne pode virar cagoma se você... Tá bom, pára, então, faz a receita mesmo cacarne e manda pra ela, mas cuidado pro bolo num ficar salgado, Insosso.

Era um doido desses sadios, quer dizer, diziam ser um doido sadio porque o médico da aldeia disse ser a saúde um bem que não faz mal a ninguém. E os males do Insosso só eram dois: ser insosso e dar ataque. Muito fácil curar o primeiro mal, bastava pôr sal. Quanto ao segundo: menino, sai de perto do Insosso porque ele tá dando ataque e se ele escumar pelos cantos da boca, pega de longe... Diziam isso, sim, mas é mentira, ele jamais deu ataque pra alguém, os ataques eram que davam nele. Insosso, nós vamos morrer? pur força, num vamo ficar pra semente... Não, Insosso, eu só tô falando porque tão dizendo qui o mundo vai se acabar daqui pra fins d'água. Pur mim, pode se acabar até amanhã, eu vou escapar na serra, dando tempo eu chegar lá, pode se acabar mundo pra todo mundo qui eu num tô nem aí...

Também era cego, meio surdo e não pedia nada, só recebia se lhe dessem espontaneamente. Não tinha o que vestir, onde morar, nem cair morto. Só uma coisa ele possuía: um eterno sorriso nos lábios. Como estás, Insosso? Tô ótis, e se punha a dançar com uma bengala, sua única companheira. Tudo era ótis. E não estava se referindo a elevadores... Ótis era ótimo, excelente, maravilhoso. Não havia nada que não fosse ótis: o lugar onde dormia, e ninguém descobria, mas presumia, o sol abrasante, o solo, escaldante, a chuva inundante, a troça humilhante, o frio que entreva, as trevas eternas, a fome freqüente, a fartura bissexta, a solidão (sobrando) a solidariedade (faltando), a miséria, a desgraça, a doença, a saúde, a morte, a vida... Tudo era ótis.

Muita gente achava aquilo natural, corriqueiro, normal, a vida teria de ser sempre assim, poucos ricos, possuidores de infinitos bens, uma fartura sem limites, uma camada mais ou menos remediada, que atende pela graça de pequena burguesia ou classe média, a qual teria mais do que o suficiente para se manter e cujos excessos teriam de ser jogados fora, nunca doados, finalmente, a classe dos Insossos e dos salgados, isto é, a ralé, a arraia-miúda, a borra, a escorralha, o lixo, a gentalha, a plebe, o populacho o povaréu, a sarandalha, o vulgacho, o zé-povinho, a bagaceira, a gentalha, a mundiça, a patuléia, o enxurro, a choldra, a escória, a cujos membros se deveriam dar os restos, desde que sobrassem alguns após alimentar os porcos e os outros animais. Havia até quem se sentisse pagante de ingresso durante os shows que eram as leituras das cartas, as receitas dos bolos, as danças com a bengala, a viagem pra serra, pois, depois, dava a ele dois tostões à guisa de cachê e, quiçá, ainda se arrependesse mais tarde, achando que devia ter dado menos, quiném aquele personagem do "Brás Cubas", cuja vida foi salva por um almocreve.

Perdoe o moralismo, leitor. Afinal, está-se a contar um conto, não a pregar um Sermão da Montanha, versão século vinte e um. Entretanto, há ocasiões em que o escritor perde as estribeiras, por sentir o dever, a obrigação (ou o remorso) de usar a sua arte, ou o seu artifício para, pelo menos, tentar ficar em paz com a consciência, embora sabendo que é muito mais fácil escrever metáforas desgastadas e fraseados elegantes do que praticar a verdadeira justiça. Justiça que o Insosso jamais conheceu. Nem por bebê-la, nem por sentir que dela sentisse sede.

(08/08/2005)

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