A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Afinal, O Que é "Eu"?

(Raymundo Silveira)

Faz duas horas e meia que morri e este não sou EU, é o MEU corpo, como poderia ser também ser o meu guarda-roupa, o meu automóvel, os meus sapatos, ou, comparando melhor, as minhas lágrimas, o meu suor, a minha saliva, a minha urina, as minhas fezes, as melecas do meu nariz, há duas horas e meia eu era EU, agora sou o MEU, mal posso acreditar que a diferença entre o EU e o MEU seja apenas uma questão de uma parada cardíaca ou da ausência de alguma atividade cerebral,quando este lixo úmido que é agora o MEU corpo era EU, costumava se atribuir uma importância extraordinária, considerava-se nada menos do que o centro do Universo, claro que não era, por outro lado, não era também completamente destituído de importância como é agora, estas homenagens fúnebres que estão celebrando neste exato momento, não são para o ELE, mas para o EU que há mais de duas horas atrás ele era, em si, o MEU cadáver não vale nada, pelo contrário, trata-se de um entulho do qual têm de se livrar o mais rapidamente possível.

Mas não era somente EU que me atribuía valor, embora me considerasse muito mais importante do que, de fato, era, as outras pessoas também me distinguiam de acordo com os seus próprios parâmetros, se tivesse sido muito rico, ou muito prestigiado, ou detivesse muito poder, valeria mais do que se não possuísse nada, e entre um extremo e outro haveria uma gradação cujas freqüências e intensidades variariam do zero absoluto ao quase infinito, agora não, sou uma matéria como outra qualquer com a circunstância agravante de que logo mais serei uma lama imunda cujo cheiro será literalmente insuportável, um pouco mais tarde serei somente ossos e depois virarei pó, obviamente, estou falando na primeira pessoa para tornar mais práticas e inteligíveis essas considerações, pois quem sofrerá todo esse processo não serei EU senão o MEU corpo com o qual pouco ou muito tinha a ver, conforme o grau do zelo que a ele dispensasse, quando ele era EU.

Sei muito bem que isto está parecendo aqueles chavões e obviedades idiotas que os vivos costumam falar entre si quando morre alguém importante, "a vida é um sopro", "isto aqui é uma passagem", "para morrer, basta estar vivo", como se alguém pudesse morrer não estando, não, não é nada disso que me leva a tecer estes comentários, "minha" intenção é apenas demonstrar o tremendo contraste entre vida e morte, entre morte e vida do ponto de vista biológico e, talvez filosófico, o qual poucas pessoas percebem, por que quando alguém está vivo o gerente de um Banco não diz assim para um dos Diretores, "o corpo do magnata fulano de tal acabou de investir dois bi em letras de câmbio", nem o subgerente nunca fala para o gerente, "o corpo deste coitado, professor da rede oficial de ensino, passou aqui agora há pouco e pretende levantar um empréstimo de dois mil", e o outro não retruca "de quem são os corpos dos avalistas?"

Parece uma ingenuidade, mas não é, estes diálogos não seriam assim tão absurdos se acaso não houvesse uma delgadíssima membrana separando o sangue de dentro de uma artéria, de um milímetro de tecido cerebral, ou se um motor de carne do tamanho de uma mão fechada, de repente parasse e os corpos pudessem se comunicar entre si, em síntese, a diferença entre EU e o MEU corpo depende de um equilíbrio tão instável quanto o de um cone amparado a partir do seu ápice, EU tenho contas a pagar e, às vezes, a receber, SOU, portanto, contribuinte, investidor, assalariado, mutuário, credor, devedor, locador, locatário, contratante, contratado, patrão, empregado, chefe, subalterno, arrendador, arrendatário, grileiro, posseiro, falsário, estelionatário, o MEU corpo não é nada disso, então, pra vocês que ficam (os EUs provisórios), bons negócios, que o Leão seja manso, feliz Páscoa, ótimo final de semana, gorda devolução do imposto de renda, baixo reajuste nas prestações da casa própria, mil por cento de aumento no salário mínimo, Merry Christmas and Happy New Year, quanto ao MEU corpo, que a terra lhe seja leve, com o Corcovado por cima e o Pão de Açúcar de quebra, até mais ver.

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