Não amanheceu. O dia despertou de ressaca. Grossas nuvens toldavam o céu.
Relâmpagos ziguezagueavam em diversas direções. Como se chamas
serpeantes e intermitentes fendessem um dossel de chumbo, lançadas por
gigantescos maçaricos. A Terra reagia, bramindo de desespero.
Não. Não amanheceu. O dia despertou de ressaca e, com ele, alguns
homens, também. Eu, inclusive E tinha de ir trabalhar. E o meu trabalho
era sob aquele céu que ameaçava chorar. E chorou torrencialmente.
Tanto que voltei para a hospedaria encharcado.
- Tá bom. Pode pôr aí em cima. Diga a sua mãe que pago
na semana que vem. Agora estou. Todo molhado, sem dinheiro e tenho de me trocar.
- O quê? Só saio daqui quando levar o dinheiro.
Era um pirralho de uns oito anos. Naquele momento eu estava mesmo sem dinheiro
algum.
- Que é isso, cara! Tua mãe lava as minhas roupas há mais
de um ano. Nunca enganei. Só não tenho o dinheiro agora e...
- Seu velhaco!
Havia duas lógicas e um conflito. A lógica da necessidade e a da
inocência. O conflito do estômago vazio e sem esperança contra
o da fome preste a ser aplacada. E uma criança faminta não podia
entender isso. "Como é que ele come e eu não, se os dois estamos
sem dinheiro?"
- Não grita, pirralho.
- Grito: Ladrão!!!
Começaram a chegar os outros hóspedes. Primeiro, uns dois ou três
simulando casualidade.
- Te cala, pivete. Se não digo a tua mãe que...
- Foi ela mesma que disse que eu te chamasse de ladrão se...
- Que é isso, rapaz. Não vê que está todo mundo escutando?
- É pra escutar mesmo: Ladrão!!!
Até aqui, nada demais: apenas um estudante sem dinheiro, uma criança
faminta como tantas outras e revoltada como poucas.
Faltava meia hora para ser servido o almoço. Mas todos os hóspedes
já se acercavam da sala de jantar. Disfarçando. Que não estavam
ali para se divertir. E sim para esperar.
- Pessoal, quem me empresta cinco reais?
Ninguém se manifestou.
Será possível, minha gente, que vão me deixar passar por
esse vexame por causa de cinco reais?
A maioria fingia não escutar. Um deles se ria.
- Não vai me pagar mesmo, não, seu velhaco?
Era uma situação tragicômica. E não havia como evitá-la.
A criança respondia com "Ladrão" a qualquer tentativa
de contra-argumentar.
Curiosos, os seres humanos. Adoram assistir à humilhação
de um semelhante, quando têm convicção da sua insignificância.
Se, no meu lugar, estivesse alguém que, potencialmente, pudesse lhes ser
útil, choveriam cincos reais. Alguns, talvez, nem quisessem receber de
volta. Para se mostrar magnânimos. Como no centro do picadeiro estava um
reles estudante, aquilo era um espetáculo imperdível. E gratuito.
- Ladrão. Velhaco. Insistia o garoto.
Um cão começou a ladrar. E veio na minha direção.
E arreganhava os dentes. Tinha se solidarizado com o menino. Não me perguntem
por quê. Provavelmente por se encontrar também faminto. Chutei-o.
Saiu ganindo com o rabo entre as pernas. Agora, todos riam. Ainda assim, aquela
cauda em forma de vírgula era uma pequena pausa no texto do meu ultraje.
Enfim, o almoço foi servido. Todos se sentaram à mesa e comiam.
Tinham o apetite dos Césares. Contudo, não queriam perder um lance
da comédia. Obviamente não me sentei. E se sentasse não comeria
nada. O constrangimento é um excelente moderador do apetite. Aliás,
moderador é eufemismo. É um removedor de apetite. Quem precisar
emagrecer, siga esta receita.
Toda humilhação faz sofrer. Só que alguns sofrem mais. Esse
sofrimento é paradoxal. Sua intensidade está na razão inversa
da própria humildade. Ou seja, quanto menos humildes, mais sofremos por
causa de uma humilhação. Trágico é aprendermos isso
tarde demais.
Aparentemente, restavam apenas duas alternativas: espancar o moleque ou conseguir
o dinheiro. Ambas inexeqüíveis, portanto. Havia uma terceira: recolher-me
aos meus aposentos. Embora incrementasse o furor e os berros do menino. Foi o
que, de fato aconteceu. E iso acabou atraindo a atenção de mais
espectadores. Agora eram vizinhos e transeuntes que de nada sabiam. E queriam
saber. E não faltava quem se dispusesse a dizer. "É um hóspede
de quem a mãe dele lavou a roupa e agora não quer pagar". "Isso
é um absurdo. Caso de polícia".
Bateram à porta do meu quarto. "Deve ser a polícia, pensei".
Era o faxineiro.
- Só tenho estes cinco reais. Tome. Pague o menino. Ninguém sabe
de nada. Conte que encontrou, casualmente, no bolso de uma camisa.
A solidariedade, agora, tinha outro nome.