A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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O Outro Nome da Solidariedade

(Raymundo Silveira)

Não amanheceu. O dia despertou de ressaca. Grossas nuvens toldavam o céu. Relâmpagos ziguezagueavam em diversas direções. Como se chamas serpeantes e intermitentes fendessem um dossel de chumbo, lançadas por gigantescos maçaricos. A Terra reagia, bramindo de desespero.

Não. Não amanheceu. O dia despertou de ressaca e, com ele, alguns homens, também. Eu, inclusive E tinha de ir trabalhar. E o meu trabalho era sob aquele céu que ameaçava chorar. E chorou torrencialmente. Tanto que voltei para a hospedaria encharcado.

- Tá bom. Pode pôr aí em cima. Diga a sua mãe que pago na semana que vem. Agora estou. Todo molhado, sem dinheiro e tenho de me trocar.

- O quê? Só saio daqui quando levar o dinheiro.

Era um pirralho de uns oito anos. Naquele momento eu estava mesmo sem dinheiro algum.

- Que é isso, cara! Tua mãe lava as minhas roupas há mais de um ano. Nunca enganei. Só não tenho o dinheiro agora e...

- Seu velhaco!

Havia duas lógicas e um conflito. A lógica da necessidade e a da inocência. O conflito do estômago vazio e sem esperança contra o da fome preste a ser aplacada. E uma criança faminta não podia entender isso. "Como é que ele come e eu não, se os dois estamos sem dinheiro?"

- Não grita, pirralho.

- Grito: Ladrão!!!

Começaram a chegar os outros hóspedes. Primeiro, uns dois ou três simulando casualidade.

- Te cala, pivete. Se não digo a tua mãe que...

- Foi ela mesma que disse que eu te chamasse de ladrão se...

- Que é isso, rapaz. Não vê que está todo mundo escutando?

- É pra escutar mesmo: Ladrão!!!

Até aqui, nada demais: apenas um estudante sem dinheiro, uma criança faminta como tantas outras e revoltada como poucas.

Faltava meia hora para ser servido o almoço. Mas todos os hóspedes já se acercavam da sala de jantar. Disfarçando. Que não estavam ali para se divertir. E sim para esperar.

- Pessoal, quem me empresta cinco reais?

Ninguém se manifestou.

Será possível, minha gente, que vão me deixar passar por esse vexame por causa de cinco reais?

A maioria fingia não escutar. Um deles se ria.

- Não vai me pagar mesmo, não, seu velhaco?

Era uma situação tragicômica. E não havia como evitá-la. A criança respondia com "Ladrão" a qualquer tentativa de contra-argumentar.

Curiosos, os seres humanos. Adoram assistir à humilhação de um semelhante, quando têm convicção da sua insignificância. Se, no meu lugar, estivesse alguém que, potencialmente, pudesse lhes ser útil, choveriam cincos reais. Alguns, talvez, nem quisessem receber de volta. Para se mostrar magnânimos. Como no centro do picadeiro estava um reles estudante, aquilo era um espetáculo imperdível. E gratuito.

- Ladrão. Velhaco. Insistia o garoto.

Um cão começou a ladrar. E veio na minha direção. E arreganhava os dentes. Tinha se solidarizado com o menino. Não me perguntem por quê. Provavelmente por se encontrar também faminto. Chutei-o. Saiu ganindo com o rabo entre as pernas. Agora, todos riam. Ainda assim, aquela cauda em forma de vírgula era uma pequena pausa no texto do meu ultraje.

Enfim, o almoço foi servido. Todos se sentaram à mesa e comiam. Tinham o apetite dos Césares. Contudo, não queriam perder um lance da comédia. Obviamente não me sentei. E se sentasse não comeria nada. O constrangimento é um excelente moderador do apetite. Aliás, moderador é eufemismo. É um removedor de apetite. Quem precisar emagrecer, siga esta receita.

Toda humilhação faz sofrer. Só que alguns sofrem mais. Esse sofrimento é paradoxal. Sua intensidade está na razão inversa da própria humildade. Ou seja, quanto menos humildes, mais sofremos por causa de uma humilhação. Trágico é aprendermos isso tarde demais.

Aparentemente, restavam apenas duas alternativas: espancar o moleque ou conseguir o dinheiro. Ambas inexeqüíveis, portanto. Havia uma terceira: recolher-me aos meus aposentos. Embora incrementasse o furor e os berros do menino. Foi o que, de fato aconteceu. E iso acabou atraindo a atenção de mais espectadores. Agora eram vizinhos e transeuntes que de nada sabiam. E queriam saber. E não faltava quem se dispusesse a dizer. "É um hóspede de quem a mãe dele lavou a roupa e agora não quer pagar". "Isso é um absurdo. Caso de polícia".

Bateram à porta do meu quarto. "Deve ser a polícia, pensei". Era o faxineiro.

- Só tenho estes cinco reais. Tome. Pague o menino. Ninguém sabe de nada. Conte que encontrou, casualmente, no bolso de uma camisa.

A solidariedade, agora, tinha outro nome.

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