A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Interlúdio

(Raymundo Silveira)

Da calçada da minha casa se tinha uma vista multifacetada do poente. Não havia horizonte. Em seu lugar, erguia-se abruptamente, de um extremo ao outro do alcance da nossa visão, majestoso relevo azulado cujas tonalidades mudavam com as horas do dia, com as variações climáticas, e com a ação deletéria das mãos humanas sobre a natureza. Na época da estação chuvosa - sobretudo, se acaso a envolvesse uma espécie de fog ao qual chamávamos "neve", certamente influenciados pelos costumes dos primeiros habitantes emigrados do Reino - parecia uma miniatura andinalpina.

O azul da serra mesclado àquele branco vaporoso transmitia também a impressão de um gigantesco iceberg. Se fosse meio dia, e o tempo estivesse parecido com o daquela breve estiagem que se segue a uma chuvarada, os raios solares incidiam sobre ela, compelindo-a a refletir uma coloração azul turquesa. Se vigorasse um regime prolongado de estio, àquela mesma hora, a montanha parecia um amontoado descomunal de cinzas, como se tudo fora o imenso rescaldo saliente de um incêndio catastrófico. Nas noites que antecediam à presumida chegada das chuvas surgiam, pontuando toda a sua extensão, pequenos focos avermelhados e tremeluzentes como se ela tivesse morrido e aquilo fossem as chamas do velório. Mas eram as queimadas: labaredas ateadas ao solo pelo homem, cuja intenção era exterminar ervas daninhas para proceder ao plantio de sementes. A única esperança de sobrevivência era a colheita de uma eventual safra de subsistência constituída exclusivamente de milho e de feijão.

Exatamente no sopé desta serra estava situada a nossa "vila olímpica" agreste. Era lá onde jogávamos futebol, vôlei e bola ao cesto; era lá onde praticávamos tiro ao alvo contra as raras avezinhas que tentavam sobreviver ao castigo da terra; foi lá onde nunca aprendi a nadar, embora passasse horas mergulhando nas águas da represa; foi lá onde fraturei o dedão do pé direito ao chutar - sem chuteiras - uma "bola" fantasma que de um momento para outro se transformara numa enorme pedra fincada ao solo. O nosso repasto era farto, embora subtraído clandestinamente do plantel de patos e capotes (galinhas d'Angola) da proprietária da quinta, apesar de reiteradas advertências: "matem tudo o que quiserem, mas deixem em paz meu criatório de aves domésticas".

Porém, o difícil não era abater as aves. A verdadeira dificuldade consistia em transformá-las em algo comestível. Havia um companheiro especializado em depenar, outro em eviscerar e um terceiro em esquartejar. Mas, se carecia de alguém que fosse capaz de imprimir um sabor, pelo menos tolerável, às carcaças. Havia a mulher de um caseiro que fingia fazer vista grossa à perpetração do nosso massacre porque já ficava na expectativa de ser convocada para este mister a troco de uma módica remuneração. Contudo, houve um dia em que faltou uma especiaria de fundamental importância para tornar palatáveis aqueles cadáveres galináceos: o vinagre. Pronto! Estávamos fritos. Ou melhor. Jamais estariam fritos ou cozidos os produtos do nosso saque. De repente, um outro companheiro especializado em malandragem teve um estalo (malandros sempre têm estalos na ocasião devida): "que tal arrombarmos a adega do 'seu' Gualberto e 'pedirmos emprestada' uma das suas garrafas de Château Lafite da coleção 'safras de reserva?'" Poucas vezes em minha vida comi algo tão delicioso. Nem mesmo o faisão ao molho madeira que em Julho de 1989 degustei em Paris no Restaurante Tour D'Argent, na noite da minha chegada, quando ainda estava com a bruaca atulhada de verdinhas, era tão saboroso. Depois deu um "rolo" sobre o qual vou me poupar de discorrer nestas memórias menos cruéis daqueles tempos de liga de ferro e ouro.

A mais ou menos dez quilômetros da "vila olímpica", na direção do ponto cardeal oposto - o nascente -, havia um balneário que só consegui "rever" em duas outras ocasiões. Em 1978, quando estive nas Cataratas do Iguaçu e sobrevoei a "Garganta do Diabo", e em 1980, portanto vinte e dois anos mais tarde, quando visitei a ex-colônia de férias do Cardeal d'Este (filho de Lucrécia Bórgia), em Tívoli. Estas comparações entre lugares tão assimétricos assim em vulto quanto em majestade, têm a sua razão de ser. É que não consigo esquecer nenhum acontecimento do meu passado e, toda vez que vejo, ouço ou sinto algo, mesmo remotamente assemelhado aos acontecimentos que vivi, estas livres associações surgem espontaneamente e, mesmo que o desejasse, seria incapaz de afastá-las. E até hoje nunca desejei isto; pelo contrário, sempre as estimulei.

O ruído de água despencando já era percebido a mais ou menos dois quilômetros de distância. Tratava-se de uma represa de médio porte cujas adutoras permaneciam fechadas, mas sempre que algum magote de desocupados se dispusesse a "molhar a mão" do funcionário encarregado da vigilância e manutenção do lago artificial, ele as abria previamente em toda a sua extensão e então jorrava uma tromba d'água sob a qual permanecíamos até o anoitecer. Era ao longo deste eixo e neste misto de malandragem, suborno, extorsão e diversão infinita, que passávamos... Ou melhor, que passava por nós o mês de Julho.

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