A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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"Ai, Meu Deus"

(Raymundo Silveira)

No tempo em que se pagava para trepar, no centro desta cidade de Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção havia mais prostíbulos do que vontade de ser doutor na cabeça dos nossos jovens de hoje em dia. Dentro do quadrilátero limitado pelas ruas Duque de Caxias, Castro e Silva, Tristão Gonçalves e Sena Madureira situava-se, sem nenhum exagero, o lugar do planeta onde se concentrava a maior quantidade de lupanares por metro quadrado. A fim de disfarçar o caráter comercial do sexo no coração de uma das mais belas capitais do Nordeste, havia um eufemismo denominado "Pensão" para designar cada putada.

Um pouco mais para levante, porém, a densidade meretricial era ainda mais intensa e onde se localizava o verdadeiro bas fond, ou seja, o que havia de mais sórdido em termos de mercantilismo, aviltação, humilhação, servidão, escravidão e indignidade humana. Este "lixeiro humano" era conhecido nos bares freqüentados pelos bêbados, que possuíam um pouco mais de compostura, por "Cinza". Mas para aquelas pessoas para quem o corpo de uma mulher valia pouco mais do que o de um animal sem dono, aquele mesmo ambiente atendia pela graça de "Curral das Éguas". As "pensões" recebiam os clientes da classe média para cima. Já os estudantes, marreteiros, maconheiros, pilantras, vagabundos e outros marginais menos bafejados pela Casa da Moeda, eram atendidos no dito "Curral das Éguas".

José Ribeiro era um estudante pobre, oriundo do interior do Estado e se preparava para ser doutor num dos cursos pré-vestibulares mais baratos da capital e morava, com mais meia dúzia de colegas, numa "república" (ainda hoje não entendi o porquê deste nome), contendo um só compartimento de mais ou menos quarenta metros quadrados e um banheiro. Uma densidade humana ainda maior do que a do "curral", mas com uma diferença crucial. Enquanto na "Cinza" circulavam alguns trocados a cada noitada, na "república" do Zé, dinheiro era uma palavra praticamente ignorada. Ele se alimentava duas vezes ao dia, mas o seu cardápio era variado. Pelo almoço, comia um ovo com arroz e ao jantar, arroz com um ovo.

A antiga Praça do Ferreira era o ponto de convergência de vários estudantes, não apenas da aldeia natal do Ribeiro, como de muitas outras. Certa noite ele deparou ali com um amigo de sua família, funcionário público e um dos "hóspedes" mais freqüentes das "pensões". "Ribeiro, vamos comigo dar uma volta na casa das primas". (Prima, não carecia de dizer, mas era mais um eufemismo; este para puta). O barnabé "amigo" do Ribeiro já estava muito acima daquele estado que Humphrey Bogart sonhava para a humanidade inteira, isto é, com três doses de uísque na cachola. "Ah, amigo, quem me dera. Não possuo um puto com que pagar a puta mais barata do curral". "Não seja por isso, amigo, eu subsidio tua trepada e depois tu me pagas". Ribeiro ainda cogitou consigo: só se for com rezas, terços e novenas. Todavia, jamais poderia descartar sem mais nem menos aquela chance de ouro, logo ele, cuja "mulher", havia mais de um ano, era ninguém menos do que a sua mão esquerda. Ribeiro era canhoto. "Bom, sendo assim vamos lá".

Seguiram para o "Bar da Alegria", a pensão ou hotel cinco estrelas da época. Ribeiro nunca havia sequer entrado lá. Cada mulher que via comparava com as lindas atrizes italianas e roliudianas dos filmes aos quais tanto assistira no precário cinema da sua aldeia. Nas suas retinas só se projetavam Avas Gardners, Ginalolobrígidas, Sofias Lorens, Niñons Sevillas, Suzanas Manganos, Elizabeths Taylors" e, por aí. O futuro doutor estava embasbacado. O financiador de Ribeiro aproximou-se da "Silvana Mangano" e murmurou algo em seu ouvido. Esta riu-se, olhou para o Zé, fez um sinal afirmativo com a cabeça e se dirigiu a ele. "Vou ficar com o teu amigo neste quarto. Toma a chave daquele outro vizinho, te despe e te deita. Logo mais irá uma mulher deitar-se contigo".

Ribeiro achava que estaria sonhando, mas fez precisamente como lhe fora orientado pela "Silvana". Despiu-se, deitou-se e esperou. Meia hora, nada. Enquanto isto no compartimento vizinho ressoavam gemidos femininos prolongados que só faziam aumentar-lhe a excitação que ele, a muito custo, controlava. Uma hora, nada. Os gemidos agora eram mais intensos e mais prolongados. Duas horas. Os suspiros, os gemidos, os "ai meu deus" não cessavam um só instante. Ribeiro chegou a cogitar, "isto não é um homem, é um maçarico!"

A essas alturas Ribeiro não suportando mais, convocou a sua canhotinha a fim de satisfazê-lo. Fez isto nada menos do que três vezes porque a outra estrela deveria ser cadente e a estas alturas talvez já estivesse no fundo do oceano. De repente ouviu três batidas fortes na porta. Correu com o coração aos pulos e a abriu. Era o amigo barnabé. "Zé Ribeiro, se quiseres podes ficar aí; vou-me embora. Aquela égua me enganou. Ficou desde aquela hora até agora gemendo sem parar com dor de dentes. Tem um bruta piorréia, a sacana".

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