A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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O Homem Que Não Acreditava No Tempo

(Raymundo Silveira)

Le passé c’est la seule réalité humaine. Tout ce qui est est passé.
(Anatole France, in Le lys rouge)

Sim, ele existiu! Minto. Pretendo contar essa história da perspectiva dele. Então, não posso dizer que existiu, que existe, nem que existirá. Simplesmente porque não acreditava em nada disso. Como é impossível contar algo sobre alguém sem um referencial ligado ao “tempo”, só me resta uma saída: narrar os acontecimentos aleatoriamente. Por outras palavras: Ora relatarei no presente, coisas do passado. Ora, no passado, fatos do presente. Ora no futuro, o passado e o presente.

Reconheço que a missão é espinhosa. Todavia, aceitei o desafio por dois motivos - e aqui já estaria encaminhando a minha heterodoxa técnica narrativa -: prometerei a ele que faria e nunca sou um desertor.

Passeio pelos anos que para ele não houve. Senti-me um objeto. Para a maioria das pessoas, o tempo, enquanto valor mensurável, é tão lógico quanto o princípio de Arquimedes. Mas, de fato, só existe em função do observador humano. Neste ponto, não só concordo com o meu personagem, como sou capaz de demonstrar a racionalidade do seu pensamento. Com efeito, não existem Futuro, Passado, e Presente. O Futuro, porque ainda não aconteceu.


O que chamamos Presente, mesmo estando ocorrendo nesse exato instante, também não existe, porque é mais fugaz do que o pensamento. Isto é, nenhum episódio chega, de fato, a acontecer no Presente. Uma vez que, logo a seguir, já é Passado. Quando dizemos, por exemplo, a palavra mãe, a imagem que se forma na consciência já não é igual àquela que se formou quando foi pronunciada. E sim uma outra, que deveria estar no Presente. Mas já passou. Portanto, só existiria o Passado. Como este já passou também, não existe. Donde se conclui que o tempo não existe.

Assim sendo, nem a epígrafe de Anatole France fará sentido. Parece uma sandice. Portanto, numa perspectiva lógica, o tempo não passa (nem passou, nem passará) de uma abstração criada pelos homens a fim de medir o tamanho das suas esperanças passadas, ou a extensão das suas saudades futuras.

Direi que me senti um objeto. Foi uma incoerência. Como objeto, não terei como formular este raciocínio. Mesmo assim, continuo me sentindo o próprio. Na verdade, rigorosamente, apenas coisas são incapazes de observar a passagem do que as outras pessoas chamam de tempo. Um cão e um gato sabem muito bem quando devem comer ou urinar. Logo, até eles tiveram essa noção. Uma pedra, não. Com isso esperei ter provado, logicamente, a mera intuição do meu amigo por falecer.

Morreu num futuro ainda remoto. É um homem bastante sensível. Nele, a emoção sempre predominará sobre a razão. É também nostálgico durante toda a vida. Mas saberá aproveitá-la, ainda que sentindo uma profunda saudade do amanhã. Muito saudável, não comerá carne. Será vegetariano por convicção. Pratica uma espécie de dieta que foi mais uma filosofia de viver: a macrobiótica. Paradoxalmente, isso não impediu a sua micro-existência: morrerá jovem.

Sei muito bem o que você está pensando, leitor: “este sujeito é um imbecil, um embusteiro, ou quer me gozar”. Não o condenei por isso. Soube reconhecer que o seu raciocínio está sintonizado com a noção anódina de tempo. Inclusive porque estarei escrevendo isto sem nenhuma veia poética. Se tudo o que já foi dito acima, terá sido sob a emoção da Poesia, ninguém me censurou. Garanto, porém, que jamais estarei a caçoar dos leitores. Tampouco sou idiota.

Um poeta pode e deve dizer: “Eu, passarinho. Eles passarão”. Misturar e comparar, abusivamente, verbos e substantivos. O escritor não poeta, jamais. Porque outra característica dos humanos foi gostar de Poesia. Com efeito, ai de nós se não será ela. Contudo, a Poesia é para ser sentida e contemplada, pela emoção. E não pode ser diferente. Ela existiu exatamente para mitigar a dor da condição humana. E esse texto, apesar de ser a história de um homem emocional, contém um critério racional.

O meu parceiro morrerá mais certo do que ninguém. Mas nunca conheceu as bases científicas e filosóficas da sua extraordinária capacidade intuitiva. Ele passará. Eu passarão.

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